quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Quatro Horas - Raquel Soares - 12º I

"Quatro Horas" foi um dos textos vencedores do Concurso de Escrita Era uma Vez..., dinamizado pela biblioteca escolar no âmbito da comemoração do Mês Internacional das Bibliotecas Escolares. É um conto da autoria da Raquel Soares do 12º I.

Era de madrugada e o tempo parecia ter estagnado. 

Um corpo no chão estendido, qual seria o seu nome? Ao lado, uma faca em repouso, como se descansasse após os cansativos e sucessivos golpes que causara. Envolto por estilhaços de vidro, um relógio que parara nas quatro horas.  

Passou exatamente um ano. Abro hoje novamente o arquivo, já coberto de poeira de três dias, enquanto penso onde fui buscar coragem para tal.  

- Quem terá sido o autor deste crime? – interrogo-me – E porquê?

As fotografias do local do crime perturbam-me. Começo a ouvir gritos agonizantes mal os meus olhos recaem sobre elas. 

- De onde estão a vir estes gritos? – questiono enquanto olho pela janela embaciada do meu escritório, ao tentar perceber a origem de tais barulhos – Estranho, não está ninguém lá fora… 

Há um ano surgira-me uma vontade de viajar para outro país. Agora que regressei, era a minha primeira hora oficial naquela casa, que só tinha sido pisada pelos meus pés e me conhecido como seu dono curiosamente no dia anterior ao crime. 

A noite inspira-me a sair, apesar do frio. Decido estudar o caso no local do crime – fica a cerca de dez minutos de minha casa -, na esperança de que isso me ajude de algum modo.

Contei os passos até lá: foram exatamente 1990 – coincidência ou não, é também o ano em que a vítima nascera.

- Este local não me é estranho… terei já vindo aqui alguma vez? 

Analiso o espaço em redor e avisto, distante, um segurança a fixar-me por entre umas grades, com um olhar desconcertante, olhar esse que, à medida que me ia aproximando dele, se enchia de uma raiva cada vez mais profunda.

- Boa noite, sou o inspetor aqui da…

- Não tenho tempo para conversas! – interrompeu – Além do mais, conversas consigo…

Com estas palavras, irrompeu pela porta da cabine e desapareceu.

«Que teria feito eu para ouvir tais palavras?» era o pensamento que se apoderava da minha cabeça no regresso a casa.

Acomodei-me no meu cadeirão, ainda a refletir sobre o que tinha acontecido.

Dirigi-me até à cozinha para preparar um café – a noite prometia ser longa.

- Como é bom regressar! – desabafo comigo próprio.

Paro a tentar lembrar-me o porquê de estar na cozinha.

- Pois é, o café!

O chiar da chaleira confundia-se já com os gritos que ainda ecoavam na minha cabeça desde que olhara para as fotografias.

Levanto a cabeça e reparo que o grande relógio de parede marcava quatro horas.

Para além de algum género de condição que me causa esquecimentos, tenho o hábito de certificar-me que está tudo no lugar. Esse é apenas um dos muitos hábitos que me atormentam o dia. Tento sempre achar um padrão matemático em tudo.

Ao abrir a gaveta dos talheres, apercebo-me da falta de um deles – uma caixa no canto da cozinha indicava que eram 20 talheres no total, e só lá estavam 19.

- Talvez o tenha perdido no dia das mudanças.

Volto ao caso, de chávena na mão, desta vez mais determinado a descobrir algum tipo de sentido.

- São quatro horas...

Fico em silêncio, à minha frente o espelho da sala de estar. De um momento para o outro, a chávena em cacos no chão, o espelho em mil pedaços de azar.

- Faço o café todos os dias por esta hora. Preciso de uma colher para o mexer. Abro a gaveta para a tirar e reparo que uma faca está em falta, há já um ano. A loiça por lavar, há já um ano. 1990 passos contados. Um segurança a julgar-me e a pouco colaborar. Deve ter presenciado tudo e receia o que lhe pode acontecer… Os gritos na minha cabeça, o local familiar… eram 20 talheres, foram 20 as facadas… A minha suposta viagem espontânea horas depois do crime… Tudo alinha perfeitamente, todos os meus lapsos de memória…  

Apago as luzes e debruço-me sobre a mesa.

É de madrugada e o tempo voltara a estagnar. 

Agora só oiço o bater do meu coração acelerado e gritos, desta vez gritos reais, os meus próprios gritos. 

Sinto dor e agonia pela primeira vez na minha vida.

- É isto que as vítimas sentem? A vida a escapar-lhes? Nada poderem fazer? Nada poderem controlar? – murmuro em soluços, ao mesmo tempo que seguro um pedaço do espelho e olho para a minha alma através dos meus olhos – ou a falta dela.

Tenho medo de mim e do que me vai acontecer. Tenho medo de lidar comigo dentro de um cubículo que me limita a liberdade por não sei quantos anos.

Fui eu o assassino.


Guerra de Palavras - Pedro Santos - 11º E

"Guerra de Palavras" foi um dos textos vencedores do Concurso de Escrita Era uma Vez..., dinamizado pela biblioteca escolar no âmbito da comemoração do Mês Internacional das Bibliotecas Escolares. É um conto da autoria do Pedro Santos do 11º E.

Mas afinal quem é mais importante?! Era uma vez… UMA GUERRA ENTRE PALAVRAS.

As classes de palavras estavam envolvidas numa grande discussão sobre qual de elas seria a mais importante. Bom... Na realidade, algumas classes não estavam nada interessadas nesta conversa. 

- Psiuuuuu! Silêncio! – Pediu a Interjeição.

- Estou contigo. Meu Deus! Que barulheira! – Sublinhou o Determinante.

Indiferentes a estes comentários, as restantes classes reclamavam o seu valor.

- Eu, Sim! Sou o mais importante porque sou único e até tenho honras de letra maiúscula! Pacífico, Pedro, Portugal…. Mais ainda, sou eu que dou às coisas, aos animais, aos sentimentos… um Nome. Se eu não existisse, como chamarias ao objeto onde te sentas e ao que sentes quando estás triste? 

- Pois, triste! Vê-se logo que precisam de mim! Sem o Adjetivo que seria do léxico?! Sem beleza, sem detalhe, sem brilho, sem cor, sem atributos… Tudo se resumiria a ti, Nome! E tu, sozinho, pouco dizes. O que é uma cadeira? Apenas uma cadeira. E se for uma cadeira grande, robusta, castanha e moderna? Tudo fica mais claro, não acham? 

- Pois tu, Nome, muito me deverias agradecer já que às vezes sou eu quem te substitui. - Argumentou o Pronome. - Tu nem sempre estás lá, mas eu sim. Acho até que trabalho mais do que tu, logo, sou mais importante. 

- Que ousadia a de palavrinhas tão sem importância! Uma letra, uma sílaba, duas… vá! – Ironizou o Nome com ar altivo.

- Não te esqueças que por detrás dessas palavrinhas estás tu, seu Nome ingrato! – Respondeu novamente o Pronome ofendido. 

- Sim, sim Pronome, tu és eu, mas em segunda mão! Sem a minha retaguarda, quem te entende e te reconhece? E também não precisas de aparecer sempre, ao contrário de mim! Um Nome é um Nome e ponto final! 

- Querem mesmo meter ao barulho a pontuação? – questionaram os Sinais de Pontuação em uníssono.

- Vês meu caro Nome? Olha lá os cinco pronomes que acabas de utilizar. Eu salpico as frases com discrição, mas, estou sempre lá. – Retorquiu o Pronome.

- A não ser quando eu te anulo, caro Pronome! Eu sou o Verbo e contenho em mim próprio taaaanta informação! Além disso, faço o mundo andar: para trás, para a frente... Sem mim, tudo era estático, monótono, parado e aborrecido. Eu é que vos faço a todos girar! E, mais uma vez, precisas de mim, no princípio, no meio ou no fim. Dar-me-ás assim razão?

- Alto aí, Sr. Pronome! – Irrompeu o Advérbio. O Verbo precisa é de mim. Guarda-te lá para o Nome, que do Verbo trato eu. Sou eu quem expõe o modo e as circunstâncias da ação. Eu sou o teu fiel braço direito. Sem mim, tu, Verbo, terias tão pouco valor! Já imaginaste se não estivesse presente? O teu sentido iria por água abaixo! Abaixo, ouviste bem? Abaixo!

- Agora sim disseste tudo Advérbio! Ora exatamente: por água abaixo. Já paraste para refletir que eu, Preposição, sou quem, embora muito discretamente, está presente em quase todas as frases da nossa língua portuguesa? Na minha ausência, a vocês, estimados companheiros lexicais, mesmo que em grande sintonia, ninguém vos compreenderia! Envolvo-me com outras classes e estas dependem de mim. Tenho tantas contrações e dou à luz tantas palavras! – Argumentou a Preposição. - Mas, como já sabem, não compactuo com discussões! Prefiro ausentar-me, para que, de uma vez por todas, percebam que todos nós importamos igualmente, no papel e no discurso! 

- Não podia estar mais de acordo, Preposição! – anuiu a Conjunção. - Assim, proponho que nos ausentemos juntas. Não estando eu, as orações vagueiam sozinhas, muitas vezes sem nexo ou significado algum! Logo, a minha importância é imensurável! Quero vos ver comunicar sem a minha presença! 

- Caros leitores, agradecemos que nos omitam da vossa leitura a partir de agora. – Pediram a Preposição e a Conjunção.

  - Assim que, estava eu, Advérbio, muito pomposamente, a enaltecer a minha magnificência, quando sou interrompido?! Agora não me recordo onde ia!  Ah?! Isto soou muito estranho! – Indagou.

- Calem-se ou tiro-vos o Nome a todos! – Ordenou o Nome enfurecido. - Podes ter sido interrompido Advérbio, mas o que tinhas a dizer não seria de grande importância com certeza. Sabes que eu sou o rei da variedade!  Possuo uma flexibilidade como mais ninguém!! Neste instante posso estar só, mas num ápice pluralizo-me!!  Sou também muito moderno pois mudo até de género!! Além disso sou extremamente vasto e nada finito. Afinal, todos os novos objetos e invenções precisam de um nome, verdade? – Concluiu. - O quê?! Não era bem isto que eu queria dizer... 

- Mas o que é que se está a passar afinal?! Que grande confusão! Ninguém consegue falar acertadamente!  Será pela ausência da Conjunção e da Preposição?! Bastou isso para causar tamanho caos? – perguntou o Adjetivo.

- Finalmente alguém sente a nossa falta! Lá se foram os ares de superioridade. – Responderam a Preposição e a Conjunção.

- Basta! Tinha dito que não me intrometeria, mas já não aguento mais tanta discussão. Arre! – Impacientou-se a Interjeição.

- Dez classes de palavras somos nós e todas somos muito importantes pois todas formamos esta frase para acabar com tremenda discussão, ufa! - Fez-se ouvir o Quantificador que estivera em silêncio até então. – Mas, já agora estimado Nome…, de valor e importância ou no que cabe a esse quesito, se a Ciência não me engana, sou, de todos, o mais infinito. E tenho dito!

E, antes que continuasse esta inútil discussão, ouviu-se uma forte pancada: Pum! Talvez uma outra batalha com um outro grupo de palavras.  


A Odisseia de Sebastião - Tomás Pinto - 10ºA

 "A Odisseia de Sebastião" foi um dos textos vencedores do Concurso de Escrita Era uma Vez..., dinamizado pela biblioteca escolar no âmbito da comemoração do Mês Internacional das Bibliotecas Escolares. É um conto da autoria do Tomás Pinto no 10º A.

Era uma vez um navegador chamado Sebastião, descendente de uma linhagem de homens do mar. Muitos diziam que o facto da sua mãe o ter dado à luz durante uma terrível tempestade fortaleceu o rapaz com o poder dos deuses. De facto, a criança não temia as águas como as outras, passando a maioria do seu tempo a observar os navios e marinheiros no porto da cidade.

Sebastião era curioso, procurava sempre saber mais sobre o mundo que o rodeava, e frequentemente questionava os seus mentores sobre temas que nem mesmo estes tinham resposta. Uma das suas dúvidas era o porquê de existir um fim no oceano que abrigaria os mais diversos monstros marinhos. Para ele, esta ideia era absurda, por isso dedicou a sua vida a provar o contrário.

Aos dezasseis anos, foi admitido como remador na tripulação do seu tio Capitão Albernaz, que conhecia os sete mares como a palma da sua mão, de quem herdou todos os seus conhecimentos marítimos, participando em várias viagens por todo o mundo.

Com a passagem do seu tio para o mundo das almas, herdou a sua frota o que lhe permitiu realizar a jornada que sempre sonhou. Começaram, então, os preparativos para esta travessia do fim do mar que seria a viagem mais aguardada de todos os tempos.

Nunca havia sido sequer imaginado algo dessa magnitude, portanto o dia da despedida reuniu uma imensa multidão, entre familiares e amigos que podiam nunca mais ver os seus navegadores. Apesar dos pedidos para ficarem, a tripulação não olhou para trás, embarcou e desapareceu no horizonte.

Durante os primeiros dias, o clima dentro dos navios era de festa, porém, na quinta noite, um temporal intimidador, fez com que o medo tomasse conta do ambiente, provocando completo caos. No meio de tanta desordem, marinheiros e navios inteiros foram engolidos pelas poderosas ondas, deixando poucos para contar a história. Entre eles encontrava-se Sebastião que, apesar de toda a devastação, defendeu que seria injusto para os que sacrificaram a vida se parassem tão cedo, prosseguindo-se com a missão.

Do Olimpo, observavam os deuses. Entre eles, Poseidon, rei dos mares, que preparava as procelas marinhas juntamente com Éolo, guardião dos ventos, para impedir os barcos de atingirem o seu território. Surpreendidos pela determinação dos marujos, adiaram a próxima tormenta e reuniram-se com o rei do Olimpo, Zeus, informando-o do ocorrido. Este ficou perplexo por alguém ter conseguido chegar tão longe e ordenou a presença de Sebastião.

Acima das nuvens, o capitão deparou-se com um imenso banquete, mas apenas dois lugares, um já ocupado por Zeus, que o convidou a sentar-se e a saborear a comida. Apesar de algum receio, fez o que lhe foi pedido. O deus dos deuses foi direto ao assunto, questionando o propósito de tal viagem, o navegador assumiu que procurava desmistificar as ideias sobre os limites do oceano e que pretendia ir mais além. Com uma gargalhada, Zeus declarou que transcender a fronteira marinha seria impossível para um mero mortal, mas que respeitava a sua bravura.

Prosseguiu com uma proposta a Sebastião: o homem e sua tripulação teriam que enfrentar uma besta aquática. Se vencessem, poderiam regressar a casa e a borda do mar seria aumentada, revelando novas terras. No entanto, se fracassassem, as suas almas seriam entregues ao rei do submundo, Hades, e a sua terra natal seria inundada. Mesmo com alguma apreensão, o comandante encarou o desafio.

O seu inimigo seria Caríbdis, um monstro de voracidade extrema que era capaz de provocar turbilhões colossais apenas com o seu movimento, protetor da passagem oceânica para o território divino. As suas capacidades eram lendárias.

Ao amanhecer, deu-se início ao confronto, que foi presenciado por todo o Olimpo. Rapidamente, o bicho investiu contra a frota, mas a agilidade dos marujos permitiu-lhes desviar o ataque. Sebastião percebeu, então, que a única possibilidade de vencerem a criatura seria se todas as embarcações navegassem diretamente para a sua boca, provocando a sua sufocação.

O capitão ordenou o avanço dos navios em direção à besta que não se intimidou pelo ataque, expandindo a mandíbula para os devorar numa dentada só, contudo não foi capaz de o fazer. Por mais que Caríbdis se revirasse e tentasse expelir os barcos, a sua sorte era inevitável, acabando por ser derrotada.

Na praia, todos celebraram a vitória dos mortais, exceto Zeus e Hades que ficaram desiludidos pela má prestação do monstro. Os marinheiros, eufóricos, comemoraram também a sua incrível façanha, ansiosos pelo regresso a casa e o reencontro com as suas famílias, que viria a acontecer uns dias mais tarde.

Sebastião e toda a tripulação, passaram a ser venerados como heróis em toda a parte. No final, a coragem e persistência de um homem que sempre defendeu aquilo em que acreditava foi o suficiente para que este ultrapassasse algo que à primeira vista seria impossível, vivendo uma fabulosa odisseia que dificilmente será esquecida, entre deuses e mortais.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Concurso "Era uma vez..."

 No Mês Internacional das Bibliotecas Escolares, desafiamos os nossos alunos a escreverem um conto e a participarem no concurso "Era uma vez...". Clica na imagem para veres o regulamento.



segunda-feira, 4 de outubro de 2021

MIBE 2021: Querer é poder

Publicamos durante o mês de outubro uma recolha de contos feita no âmbito da comemoração do Mês Internacional da Biblioteca Escolar.

Querer é poder (português arcaico)

- Portugal -

 

— Quem procura sempre encontra diz um velho proverbio; quero ver por experiencia, disse um dia um rapaz, se esta maxima é verdadeira.

Poz-se a caminho, e foi apresentar-se ao governador d'uma grande cidade.

— Senhor, disse-lhe elle, ha muitos annos que vivo tranquillo e solitariamente, e a monotonia fatigou-me. Meu amo disse-me muitas vezes — Quem procura sempre encontra, e quem porfia mata caça. Tomei uma grande resolução. Quero casar com a filha do rei.

O governador mandou-o embora, imaginando que era um doido.

O rapaz voltou no dia seguinte, no outro e no outro, e assim durante uma semana, sempre com a mesma vontade inabalavel, até que o rei ouviu fallar o rapaz da sua louca pretensão. Surprehendido com uma idéa tão extravagante, e, querendo divertir-se, disse-lhe o rei:

— Que um homem distincto pela gerarchia, pela coragem, pela sciencia, pensasse em casar com uma princeza, nada mais natural. Mas tu, quaes são os teus titulos? Para seres o marido de minha filha é necessario que te distingas por alguma qualidade especial ou por um acto de valor extraordinario. Ouve. Perdi ha muito tempo no rio um diamante d'um valor incalculavel. Aquelle que o encontrar obterá a mão de minha filha.

O rapaz, contente com esta promessa, foi estabelecer-se nas margens do rio; logo de manhã começava a tirar agua com um balde pequeno, e deitava-a na areia, e, depois de ter assim trabalhado durante horas e horas, punha-se a resar.

Os peixes inquietos ao verem tão grande tenacidade, e receiando que chegasse a esgotar o rio, reuniram-se em conselho.

— Que quer este homem? perguntou o rei dos peixes.»

— Encontrar um diamante que caiu ao rio.»

— Então, respondeu o velho rei, sou d'opinião que lh'o entreguem, porque vejo qual é a tempera da vontade d'este rapaz; mais facil seria esgotar as últimas gotas do rio, do que desistir da sua empreza.»

Os peixes deitaram o diamante no balde do rapaz, que casou com a filha do rei.

 

                                                                                                                                     Desconhecido


MIBE 2021: Os Pecegos

 

Publicamos durante o mês de outubro uma recolha de contos feita no âmbito da comemoração do Mês Internacional da Biblioteca Escolar.

Os pecegos (português arcaico)

- Portugal -


Um lavrador que tinha quatro filhos trouxe-lhes um dia cinco pecegos magníficos. Os pequenos, que nunca tinham visto semelhantes fructos, extasiaram-se diante das suas côres e da fina penugem que os cubria. À noite o pae perguntou-lhes:

— Então comeram os pecegos?

— Eu comi, disse o mais velho. Que bom que era! Guardei o caroço, e hei de plantal-o para nascer uma arvore.»

— Fizeste bem, respondeu o pae, é bom ser economico e pensar no futuro.»

— Eu, disse o mais novo, o meu pecego comi-o logo, e a mamã ainda me deu metade do que lhe tocou a ella. Era doce como mel.»

— Ah! acudiu o pae, foste um pouco guloso, mas na tua edade não admira; espero que quando fores maior te has de corrigir.»

— Pois eu cá, disse um terceiro, apanhei o caroço que o meu irmão deitou fóra, quebrei-o, e comi o que estava dentro, que era como uma noz. Vendi o meu pecego, e com o dinheiro hei de comprar coisas quando for á cidade.»

O pae meneou a cabeça:

— Foi uma idéa engenhosa, mas eu preferia menos calculo.

— E tu, Eduardo, provaste o teu pecego?

— Eu, meu pae, respondeu o pequeno, levei-o ao filho do nosso visinho, ao Jorge, que está coitadinho com febre. Elle não o queria, mas deixei-lh'o em cima da cama, e vim-me embora.

— Ora bem, perguntou o pae, qual de vós é que empregou melhor o pecego que eu lhe dei?

E os três pequenos disseram á uma:

— Foi o mano Eduardo.

Este no entanto não dizia palavra, e a mãe abraçou-o com os olhos arrazados de lagrimas.

Desconhecido

MIBE 2021: O Pinheiro Ambicioso

 

Publicamos durante o mês de outubro uma recolha de contos feita no âmbito da comemoração do Mês Internacional da Biblioteca Escolar.

O Pinheiro ambicioso (português arcaico)

- Portugal -


Era uma vez um pinheiro, que não estava contente com a sua sorte. «Oh! dizia elle, como são horrorosas estas linhas uniformes de agulhas verdes, que se estendem ao longo dos meus ramos! Sou um pouco mais orgulhoso que os meus visinhos, e sinto que fui feito para andar vestido de outro modo. Ah! se as minhas folhas fossem de oiro!»

O Genio da montanha ouviu-o, e no dia seguinte pela manhã acordou o pinheiro com folhas de oiro. Ficou radiante de alegria, e admirou-se, pavoneou-se todo, olhando com altivez para os outros pinheiros, que, mais sensatos do que elle, não invejavam a sua rapida fortuna. Á noite passou por alli um judeu, arrancou-lhe todas as folhas, metteu-as n'um sacco, e foi-se embora, deixando-o inteiramente nu dos pés á cabeça.

«Oh! disse elle, que doido que eu fui! não me tinha lembrado da cobiça dos homens. Fiquei completamente despido. Não ha agora em toda a floresta uma planta tão pobre como eu. Fiz mal em pedir folhas de oiro; o oiro attrae as ambições.

Ah! se eu arranjasse um vestuario de vidro! Era deslumbrante, e o judeu avarento não me teria despido.»

No dia seguinte acordou o pinheiro com folhas de vidro, que reluziam ao sol como pequeninos espelhos. Ficou outra vez todo contente e orgulhoso, fitando desdenhosamente os seus visinhos. Mas n'isto o ceo cobriu-se de nuvens, e o vento rugindo, estallando, quebrou com a sua aza negra as folhas de cristal.

«Enganei-me ainda, disse o joven pinheiro, vendo por terra todo feito em pedaços o seu manto cristalino. O oiro e o vidro não servem para vestir as florestas. Se eu tivesse a folhagem assetinada das avelleiras, seria menos brilhante, mas viveria descansado.»

Cumpriu-se o seu ultimo desejo, e, apesar de ter renunciado ás vaidades primitivas, julgava-se ainda assim mais bem vestido do que todos os outros pinheiros seus irmãos. Mas passou por ali um rebanho de cabras, e vendo as folhas acabadas de nascer, tenrinhas e frescas, comeram-lh'as todas sem deixar uma unica.

O pobre pinheiro, envergonhado e arrependido, já queria voltar á sua fórma natural. Conseguiu ainda este favor, e nunca mais se queixou da sua sorte.

Desconhecido

MIBE 2021: Não quero

 

Publicamos durante o mês de outubro uma recolha de contos feita no âmbito da comemoração do Mês Internacional da Biblioteca Escolar.

Não quero (português arcaico)

- Portugal -


Um dia, passando na estrada, ouvi dois rapazitos que fallavam muito alto: «Não, dizia um com voz energica, não quero.» Parei e perguntei-lhe: — O que é que tu não queres, meu rapaz? — «Não quero dizer á mamã que venho da escola, porque é mentira. Sei que me hade ralhar, mas antes quero que me ralhe do que mentir.» — E tens razão, disse-lhe eu. És um rapaz como se quer.» Apertei-lhe a mão, emquanto que o outro pequeno, que lhe aconselhava que se desculpasse mentindo, ia-se embora todo envergonhado.

D'ahi a alguns mezes, passando pela mesma aldeia e tendo de fallar com o professor, entrei na escola, onde reconheci immediatamente os meus dois pequenos; o que não quiz mentir, sorria-me, emquanto que o outro, vendo-me, baixou os olhos. Ao despedir-me interroguei o mestre sobre os dois alumnos: Oh! disse-me elle, fallando do primeiro, é um magnifico estudante, um pouco teimoso, mas honrado, sincero, sempre prompto a confessar as suas faltas e o que é ainda melhor, a reparal-as. O outro pelo contrário, é mentiroso, covarde e incorrigivel.» — Não me espanto, disse eu, já tinha tirado o horóscopo d'estas duas creanças; e contei-lhe o que tinha ouvido.

Desconhecido

MIBE 2021: L'homme blanc

 

Publicamos durante o mês de outubro uma recolha de contos feita no âmbito da comemoração do Mês Internacional da Biblioteca Escolar.

L’ Homme Blanc

- França -


Voici ce qui est arrivé à un vieux soldat qui a perdu une jambe à la guerre, et qui va demander son pain de porte en porte.

Ce vieux soldat suivait un jour le chemin de Nérac à Agen avec un seul morceau de pain dans sa besace. Arrivé près de Moncaut, il s'assit au bord d'un fossé, et il commençait à manger, quand il vit venir à lui un homme vêtu de blanc de la tête aux pieds : chapeau blanc, habits et souliers blancs, et un grand bâton blanc à la main droite.

- Que fais-tu là, mon ami?

- Vous le voyez, Monsieur; je mange un morceau de pain. Nous le partagerons si vous voulez.

- Avec plaisir, mon ami.

L'homme blanc s'assit sur le bord du fossé à côté du vieux soldat, qui lui donna la moitié de son morceau de pain. Quand ils eurent mangé, l'homme blanc se leva et dit:

- Merci, mon ami. Tu peux suivre ton chemin. Rien ne te manquera aujourd'hui, et avant que tu rentres ce soir dans ta maisonnette, tu auras ramassé du pain pour vivre pendant un mois.

Le vieux soldat se remit en chemin. De toutes les métairies on l'appelait pour lui donner, et quand il rentra le soir dans sa maisonnette, il avait ramassé du pain pour vivre pendant un mois.

Ce même jour, l'homme blanc rencontra sur le chemin un voiturier qui portait trois religieuses.

- Mes soeurs, je suis las. Donnez-moi une petite place dans votre voiture.

- Passe ton chemin, homme blanc ; il n'y a pas de place ici pour toi.

Alors le voiturier eut pitié de l'homme blanc, et lui donna une place à son côté.

- Merci, mon ami. Ta charité te sera payée.

Ils cheminèrent ainsi jusqu'à un quart d'heure de Nérac. Alors l'homme blanc descendit et dit au voiturier:

- Je t'ai dit que ta charité te serait payée. Aussi vrai que ces trois religieuses que tu vois si pleines de vie seront mortes avant d'arriver à Nérac, tu trouveras ta femme qui est malade depuis sept ans, tout à fait guérie et occupée à te faire la soupe.

L'homme blanc s'en alla. Quand le voiturier arriva à Nérac, il trouva les trois religieuses mortes mais sa femme était sur la porte et criait:

- Allons, mon homme, dépêche-toi : la soupe se refroidit.

Desconhecido

MIBE 2021: Hansel e Gretel

 

Publicamos durante o mês de outubro uma recolha de contos feita no âmbito da comemoração do Mês Internacional da Biblioteca Escolar.

Hansel und Gretel

- Alemanha -

 

Era uma vez um casal de camponeses muito pobres que tinha dois filhos: um menino, Hansel, e uma menina, Gretel.

Uma terrível seca devastara as suas colheitas e, como mal tinham alimentos para passar o inverno, decidiram abandonar os meninos na floresta.

– Talvez sozinhos tenham mais sorte… – decidiram os pais.

Nessa noite, os camponeses deitaram-se com uma imensa tristeza.

Os dois irmãos, que estavam acordados, ouviram a conversa toda.

Primeiro sentiram-se aterrorizados, mas depois Hansel teve uma boa ideia: foi lá fora e encheu os bolsos de pequenas pedras.

Na manhã seguinte levantaram-se muito cedo. Antes de saírem, a mãe deu-lhes um pedaço de pão.

Hansel foi deixando cair as pedrinhas à sua passagem. Chegados a uma clareira da floresta fizeram uma fogueira. O pai, com pesar, disse:

– Não saiam daqui. Nós temos de apanhar lenha para o inverno todo.

Hansel e Gretel aqueceram-se junto à fogueira e colheram as últimas framboesas do outono. O seu sabor recordava-lhes os doces que a mãe fazia nos dias de festa.

Ao cair a noite decidiram voltar para casa.

A Lua iluminava o caminho de pedras que lhes servia de guia.

Quando bateram à porta, os camponeses ficaram muito contentes por voltarem a ver os filhos, e deram-lhes a única coisa que tinham para comer: sopa quente.

Durante algum tempo viveram felizes, até que uma inundação acabou com o pouco que restava. Na despensa não havia mais que umas côdeas de pão.

– Se continuamos assim morremos os quatro à fome – disse a mulher. – Temos de abandoná-los de novo e esperar que tenham um futuro melhor.

Os meninos, que não conseguiam dormir por estarem famintos, voltaram a ouvir a conversa.

Hansel quis novamente ir buscar pedras, mas a porta estava fechada à chave.

– Havemos de ter alguma ideia – disse à irmã.

Na manhã seguinte os camponeses partilharam o pão e foram até à floresta.

Hansel foi deixando cair umas migalhitas para marcar o caminho.

De novo, os dois irmãos ficaram sozinhos junto à fogueira.

Ao anoitecer quiseram regressar a casa mas… os pássaros tinham comido o pão todo! Muito tristes, puseram-se a andar, sem rumo.

De súbito, o vento trouxe-lhes um cheirinho agradável…

– Cheira a doce? – perguntou a Gretel.

– Sim! Às bolachas que a mamã fazia no Natal! – recordou Gretel.

Num abrir e fechar de olhos chegaram a um lugar onde estava a coisa mais maravilhosa que eles alguma vez tinham visto: uma casa com telhado de chocolate, paredes de maçapão, janelas de rebuçado, portas de goma… Um autêntico manjar!

– Gretel, vou comer o teto! Tu, podes começar pelas janelas! – exclamou Hansel.

Estavam tão extasiados que nem repararam que alguém os estava a observar…

De repente, a voz aterradora de uma bruxa deixou-os paralisados:

– Que estão a fazer, seus pirralhos?

– É que… ti… ti… tínhamos fome e… – balbuciou Gretel.

– Eu também estou esfomeada! E como vocês comeram a minha casa, agora vou comer-vos aos dois!

Os meninos ficaram petrificados.

Hansel deu a mão à irmã e sussurrou com voz trémula:

– Havemos de ter alguma ideia…

A bruxa arrastou-os para o interior da casa murmurando:

– Este miúdo… cabe na cova de um dente! Terei de engordá-lo…

Fechou Hansel numa gaiola e obrigou Gretel a ajudá-la com as suas poções.

A casa estava cheia de estátuas estranhas que pareciam vigiar tudo o que se passava.

Gretel todos os dias levava comida ao irmão enquanto a bruxa dizia:

– Quando estiver gordinho, irei assá-lo bem assadinho. AH, AH, AH!

Hansel tranquilizava a irmã:

– Havemos de ter alguma ideia!

Gretel, que conhecia bem as propriedades das plantas, rapidamente se apercebeu de que a bruxa era pitosga e que a poção que preparava era para ver melhor. Assim, decidiu trocar os ingredientes.

– Cada dia vejo menos – protestava a bruxa.

À noite, antes de se deitar, aproximava-se da gaiola e dizia:

– Mostra-me o dedo, para ver o quanto engordaste.

Hansel mostrava-lhe sempre o mesmo osso de frango e ela rosnava:

– Mas… como é que isto pode ser? Todo o dia a comer e continuas magro como um cão!

Aquela artimanha funcionou durante várias semanas, até que um dia a bruxa acordou de mau humor e pensou:

Já estou cansada de esperar! Mesmo que ele não tenha muita carne, os ossos darão para uma bela sopa…

Impaciente, ordenou a Gretel:

– Prepara o forno!

– Estou a mexer a poção – respondeu a menina. – Quer que a deixe assim?

A bruxa pensou que a poção também era importante e aproximou-se do fogão para preparar as brasas.

Como não via bem, meteu a cabeça dentro do forno.

Então Gretel empurrou-a com todas as suas forças e… zás!, fechou a porta.

A malvada da bruxa começou a arder e transformou-se numa nuvem de fumo que invadiu a floresta.

Para libertar o irmão, Gretel puxou-o com tanta força que Hansel saiu disparado da gaiola e partiu uma das estátuas que decoravam a sala.

Ao aproximar-se viu que no seu interior havia… pedras preciosas!

Gretel partiu outra: tinha moedas de ouro!

E mais outra: estava repleta de brilhantes!

Depois de carregarem o tesouro na carruagem da bruxa, Gretel levou consigo o livro de receitas de poções, e Hansel várias telhas de chocolate. Com o estômago cheio seria mais fácil encontrar o caminho de regresso.

Ao cair a noite chegaram a casa.

Os pais, reconheceram logo as vozes deles e, emocionados, saíram à rua para os receber:

– Ai, que saudades vossas!

Os meninos contaram-lhes tudo o que tinha acontecido e mostraram-lhes o tesouro da bruxa.

A partir daquele dia, nunca mais ninguém voltou a passar fome naquela região.

E desde então, todas as noites, sentavam-se os quatro em redor da lareira para partilharem uma bela chávena de chocolate quente.

                                                                                       Recolhido pelos irmãos Grimm


MIBE 2021: Garbancito

 

Publicamos durante o mês de outubro uma recolha de contos feita no âmbito da comemoração do Mês Internacional da Biblioteca Escolar.

Garbancito

- Espanha -


Érase una vez hace mucho tiempo, un niño tan pequeño que cabía en la palma de una mano. Todos le llamaban Garbancito, incluso sus padres que le adoraban porque era un hijo cariñoso y muy listo. El tamaño poco importa cuando se tiene grande el corazón.

Era tan diminuto que nadie lo veía cuando salía a la calle. Eso sí, lo que sí podían hace era oirle cantando su canción preferida:

– “¡Pachín, pachín, pachín!

¡Mucho cuidado con lo que hacéis!

¡Pachín, pachín, pachín!

¡A Garbancito no piséis!”

A Garbancito le gustaba acompañar a su padre cuando iba al campo a la faena y aunque este temía lo que le pudiera pasar, le dejaba acompañarlo. En una ocasión Garbancito iba disfrutando de lo lindo, porque su padre le había permitido guiar al caballo.

– “¡Verás como también puedo hacerlo!”, le había dicho a su padre. Luego le pidió que lo situara sobre la oreja del animal y empezó a darle órdenes, que el caballo seguía sin saber de dónde provenían.

–“¿Ves, papá? No importa si soy pequeño, si también puedo pensar”. Le decía Garbancito a su padre que lo miraba orgulloso. Cuando llegaron al campo de coles, mientras su padre recolectaba todas las verduras para luego llevarlas al mercado, Garbancito jugaba y correteaba por dentro de las plantas.

Tanto se divertía el niño que no se dio cuenta de que cada vez se iba alejando más de su padre.

De repente en una de las volteretas quedó atrapado dentro de una col, captando la atención de un enorme buey que se encontraba muy cerca de allí.

El animal de color parduzco se dirigió hacia donde se encontraba Garbancito y engulló la col de un solo bocado, con el niño adentro. Cuando llegó la hora de regresar el padre buscó a Garbancito por todos lados, sin éxito. Desesperado fue a avisar a su mujer, quien le ayudó a recorrer todos los sembrados y caminos casi hasta el anochecer. Gritaban con una sola voz: – ¡Garbancito! ¿Dónde estás hijo? Pero nadie respondía.

Los padres apenas pudieron conciliar el sueño aquella noche con el temor de no volver a ver a su hijo. A la mañana siguiente retomaron la búsqueda, sin ser capaces de encontrar aún a Garbancito.

Pasó la época de lluvia y luego las nevadas, y los padres seguían buscando: – ¡Garbancito! ¡Garbancito! Hasta un día en que se cruzaron con el enorme buey parduzco y sintieron una voz que parecía provenir de su interior. ¡Mamá! ¡Papá! ¡Estoy aquí! ! ¡En la tripa del buey, donde ni llueve ni nieva!

Sin poder creer que lo habían encontrado y aún seguía vivo, los padres se acercaron al buey e intentaron hacerle cosquillas para que lo dejara salir. El animal no pudo resistir y con un gran estornudo lanzó a Garbancito hacia afuera, quien abrazó a sus padres con inmensa alegría.

Luego de los abrazos y los besos, los tres regresaron a la casa celebrando y cantando al unísono:

– “¡Pachín, pachín, pachín!

– ¡Mucho cuidado con lo que hacéis!

– ¡Pachín, pachín, pachín!

– ¡A Garbancito no piséis!”
Desconhecido

Recolha de contos feita pela equipa da Biblioteca Escolar

MIBE 2021: A Mulher-esqueleto

 

Publicamos durante o mês de outubro uma recolha de contos feita no âmbito da comemoração do Mês Internacional da Biblioteca Escolar.

A Mulher-esqueleto

- Canadá -


Ela tinha feito alguma coisa que o pai não aprovava, embora ninguém mais se lembrasse do que tinha sido. O pai, no entanto, tinha-a arrastado até aos penhascos, atirando-a ao mar. Lá, os peixes devoraram a sua carne e arrancaram os seus olhos. Enquanto jazia no fundo do mar, o seu esqueleto rolou muitas vezes com as correntes.

Um dia um pescador veio pescar. Bem, na verdade, em outros tempos muitos costumavam vir a essa baía pescar. Esse pescador, porém, estava afastado da sua colónia e não sabia que os pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegação de que a enseada era mal-assombrada.

O anzol do pescador foi descendo pela água abaixo e prendeu-se — logo em quê! — nos ossos das costelas da Mulher-esqueleto.

O pescador pensou: “Ah, agora apanhei um grande de verdade! Agora apanhei um mesmo!” Na sua imaginação, ele já via quantas pessoas esse peixe enorme iria alimentar, quanto tempo a sua carne duraria, quanto tempo ele se veria livre da obrigação de pescar. E enquanto ele lutava com esse enorme peso na ponta do anzol, o mar encapelou-se com uma espuma agitada, e o caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá em baixo lutava para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. Não importa o que fizesse, ela estava a ser inexoravelmente arrastada para a superfície, puxada pelos ossos das próprias costelas.

O pescador tinha-se voltado para recolher a rede e, por isso, não viu a cabeça calva surgir acima das ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nas órbitas do crânio; não viu os crustáceos nos velhos dentes de marfim. Quando ele se voltou com a rede nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que estava, já tinha chegado à superfície e caía suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos.

— Ah! — gritou o homem, e o seu coração afundou até aos joelhos, os seus olhos esconderam-se apavorados no fundo da cabeça e as suas orelhas arderam num vermelho forte.

— Ah! — berrou ele, soltando-a da proa com o remo e começando a remar loucamente na direção da terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua linha, ele ficou ainda mais assustado, pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo o tempo todo até à praia. Não importava de que forma ele desviasse o caiaque, ela continuava ali atrás. A sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e os seus braços agitavam-se como se quisessem agarrá-lo para levá-lo para as profundezas.

— Aaaahhhh! — uivava ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um salto ele estava fora da embarcação e saía a correr agarrado à vara de pescar. E o cadáver branco da Mulher-esqueleto, ainda preso à linha de pescar, vinha aos solavancos bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela acompanhou-o. Ele atravessou a tundra gelada, e ela não se distanciou. Ele passou por cima da carne que tinha deixado a secar, rachando-a em pedaços com as passadas dos seus mukluks.

Ela continuou sempre atrás dele, na verdade até apanhou um pedaço do peixe congelado enquanto era arrastada. E logo começou a comer, porque há muito, muito tempo não se saciava. Finalmente, o homem chegou ao seu iglu, enfiou-se no túnel e, de quatro, engatinhou de qualquer modo para dentro. Ofegante e soluçante, ele ficou ali deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, um tambor enorme. Afinal, estava seguro, ah, tão seguro, é, seguro, graças aos deuses, Raven, é, graças a Raven, é, e também à toda-generosa Sedna, em segurança, afinal.

Imaginem quando ele acendeu a sua lamparina de óleo de baleia, ali estava ela — aquilo — num monte no chão de neve, com um calcanhar sobre um ombro, um joelho preso nas costelas, um pé por cima do cotovelo. Mais tarde ele não saberia dizer o que realmente aconteceu. Talvez a luz tivesse suavizado as suas feições; talvez fosse o facto de ele ser um homem solitário. Mas a sua respiração ganhou um quê de delicadeza, bem devagar ele estendeu as mãos encardidas e, falando baixinho como a mãe fala com o filho, começou a soltá-la da linha de pescar.

— Oh, na, na, na. — Ele primeiro soltou os dedos dos pés, depois os tornozelos.

— Oh, na, na, na. — Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para aquecê-la, já que os ossos da Mulher-esqueleto eram iguaizinhos aos de um ser humano.

Ele procurou a pederneira na bainha de couro e usou um pouco do próprio cabelo para acender mais um foguinho. Ficou a olhar para ela de vez em quando enquanto passava óleo na preciosa madeira da sua vara de pescar e enrolava novamente a sua linha de seda. E ela, no meio das peles, não pronunciava palavra — não tinha coragem — para que o caçador não a levasse lá para fora e a lançasse lá em baixo nas pedras, quebrando totalmente os seus ossos.

O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava a sonhar. Às vezes, quando os seres humanos dormem, acontece de uma lágrima escapar do olho de quem sonha. Nunca sabemos que tipo de sonho provoca isso, mas sabemos que ou é um sonho de tristeza ou de anseio. E foi isso o que aconteceu com o homem.

A Mulher-esqueleto viu o brilho da lágrima à luz do fogo, e de repente ela sentiu uma sede daquelas. Ela aproximou-se do homem que dormia, rangendo e retinindo, e pôs a boca junto à lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, que ela bebeu, bebeu e bebeu até saciar a sede de tantos anos.

Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a mão para dentro do homem que dormia e retirou o coração, aquele tambor forte. Sentou-se e começou a bater dos dois lados do coração:

Bom, Bomm!… Bom, Bomm!

Enquanto marcava o ritmo, ela começou a cantar em voz alta.

— Carne, carne, carne! Carne, carne, carne! — E quanto mais cantava, mais o seu corpo se revestia de carne. Ela cantou para ter cabelo, olhos saudáveis e mãos boas e gordas. Ela cantou para ter a divisão entre as pernas e seios compridos o suficiente para se enrolarem e dar calor, e todas as coisas que as mulheres precisam.

Quando estava pronta, ela também cantou para despir o homem que dormia e enfiou-se na cama com ele, a pele de um tocava a do outro. Ela devolveu o grande tambor, o coração, ao corpo dele, e foi assim que acordaram, abraçados um ao outro, entrelaçados na noite, agora de outro modo, de um modo bom e duradouro.

Desconhecido

Recolha de contos feita pela equipa da Biblioteca Escolar

MIBE 2021: A História do Boi Blimundo

 

Publicamos durante o mês de outubro uma recolha de contos feita no âmbito da comemoração do Mês Internacional da Biblioteca Escolar.

A história do boi blimundo

- Cabo Verde -


Havia um boi chamado Blimundo. Era grande, forte e amante da vida e da liberdade. Além disso, era muito amado e respeitado por todos, pois sabia pensar por si próprio, além de ser muito gentil com todos.

Ao saber da existência de criatura tão autêntica, Senhor Rei perguntou-se que boi seria esse, que ousava ser tão livre nos seus posicionamentos que fazia com que os outros bois seguissem o exemplo. Se ele continuasse assim, quem faria, depois, o trabalho pesado do reino? Ordenou, então, que Blimundo fosse apanhado morto ou vivo, e trazido até à sua presença.

Os homens do Senhor Rei saíram em busca do boi, mas este encontrou-os primeiro e deu-lhes um fim. Ao saber da notícia, Senhor Rei reuniu os homens mais valentes do reino e mandou-os capturar Blimundo, e os homens partiram. O boi, novamente, deu cabo dos homens. Quando recebeu tão triste notícia, Senhor Rei desesperou-se, mas logo ouviu falar de um rapaz que fora criado no borralho da cinza e que se prontifica a ir buscar Blimundo. O menino pediu um cavaquinho, um “bli” dágua e uma bolsa de “prentém”. Além disso, quando retornasse queria a metade da riqueza do reino e a mão da princesa. Senhor Rei concordou e o jovem partiu.

Então o jovem sai em busca do boi cantando uma canção que deixa Bilmundo encantado, na qual o jovem diz que, se Blimundo for com ele, casará com a Vaquinha da Praia. O boi pergunta se é verdade, o rapaz responde que sim. O jovem pede a Blimundo que o deixe montar, pois o caminho é muito longo. Ele deixa com a condição de que o rapaz continue cantando. Senhor Rei colocou a tropa em pontos estratégicos para receber Blimundo. Ao ver o boi chegar, a carregar o rapaz no lombo, cansado e feliz, Senhor Rei não acreditou. À porta do palácio, o rapaz pediu para descer do lombo de Blimundo a fim de fazer a barba antes de ser apresentado à Vaquinha da Praia. O jovem conta o seu plano ao Senhor Rei e leva até o boi um barbeiro com os seus instrumentos. Atrás deles, Senhor Rei. O barbeiro, enquanto Blimundo sonha com o amor da Vaquinha da Praia, corta-lhe a garganta com a navalha. Antes de morrer, o boi atinge o rei com uma patada que o mata.

O rapaz e o barbeiro fogem, mas jamais esquecem o último olhar de revolta de uma criatura cujo único erro foi acreditar na harmonia, na justiça e na liberdade.

Desconhecido

Recolha de contos feita pela equipa da Biblioteca Escolar

MIBE 2021: A Aventura de Chu


Publicamos durante o mês de outubro uma recolha de contos feita no âmbito da comemoração do Mês Internacional da Biblioteca Escolar.

A aventura de Chu

- China -

Era uma vez dois amigos que viajavam pelo mundo. Heng e Chu passaram por países desconhecidos, rios, vales e montanhas. 

Um dia, quando atravessaram uma floresta, viram que logo ia desabar uma tempestade. Procuraram abrigo e viram ao longe um velho templo em ruínas. Correram para lá e foram recebidos por um velho monge muito sorridente.

O monge disse-lhes:
- Amigos, quero que vocês me acompanhem até à sala dos fundos do templo. Lá está representada uma obra de arte como não existe igual. Venham ver o bosque de pinheiro que está pintado na parede do fundo do templo.

Ele virou-se e foi devagar, arrastando os chinelos. Os dois seguiram-no. Quando chegaram à última sala, ficaram maravilhados. De facto, era uma magnífica obra de arte. Começaram a andar desde o começo da pintura, observando as árvores de todos os tamanhos e tons de verde. Perceberam que além dos pinheiros havia outras figuras, montanhas ao fundo, um sol dourado iluminando o céu, jovens em grupos, em pares, conversando, colhendo flores.

Chu ia na frente e, quando chegou bem no meio da parede, parou. Ali estava uma jovem tão linda que o deixou boquiaberto. Era alta, elegante, os olhos negros pareciam duas jabuticabas, a boca era como um morango maduro; tinha um cesto no braço, colhia flores e os seus cabelos eram longos e negros, penteados em duas grossas tranças até à cintura. Chu apaixonou-se imediatamente por ela e ficou ali parado, contemplando cada detalhe daquela jovem tão bela.

Chu não sabe quanto tempo ficou ali, até que de repente sentiu como se estivesse a flutuar, os seus pés não tocavam o chão. Olhou à sua volta e viu um sol dourado iluminando o céu, ouviu vozes e percebeu que eram das jovens que ele tinha visto pintadas na parede. Foi então que se deu conta de que estava dentro do quadro.

Quando se refazia do susto, viu a jovem de quem tinha gostado, um pouco mais adiante. Ela olhou para ele, sorriu, atirou as tranças para trás e saiu a correr. Ele seguiu-a até que ela chegou a um jardim cheio de pequenas flores coloridas, que ficavam em volta de uma casa toda branca. Ela atravessou o jardim e parou à frente da porta. Quando Chu se aproximou, eles entraram e ficaram parados em pé, um diante do outro, bem no meio daquele aposento silencioso. Eles abraçaram-se, e Chu sentiu que amava aquela jovem como se fosse desde sempre. Então, eles foram para a cama, e, na manhã seguinte eram marido e mulher. A jovem levantou-se e foi pentear os longos cabelos, mas agora não fez as duas tranças, e sim um coque na nuca, como era o costume das mulheres casadas.

Enquanto conversavam, ouviram barulhos estranhos lá fora, passos pesados, som de correntes. A jovem ficou pálida, fez um sinal para Chu não dizer uma palavra. Foram até a uma fresta da porta e espiaram para fora. Viram um ser descomunal, inteiramente vestido com uma armadura de ferro. Com os olhos ameaçadores, ele carregava nas mãos um chicote, grilhões e uma corrente.

Ele disse para as jovens do quadro que estavam à sua volta, apavoradas:

- Afastem-se. Sei que há um ser humano entre nós, não adianta esconder. Agora vou vasculhar dentro da casa, tenho certeza de que ele está lá.

A jovem ficou mais pálida ainda e disse:

- Chu, depressa, esconda-se embaixo da cama, não dá tempo de mais nada. Chu mal teve tempo de correr para debaixo da cama quando viu a porta abrir-se. Duas botas de ferro entraram para dentro do quadro.

Enquanto isso, Heng olhava o quadro e deu por falta do amigo.

Perguntou ao velho monge onde ele estava e o velho respondeu:

- Não se preocupe, ele não está muito longe não.

Batendo com os dedos na parede, chamou com voz tranquila:

- Volte senhor Chu. Já é tempo de encontrar o seu amigo outra vez!

Neste momento, Chu foi saindo de dentro da parede.

- Onde esteve? – perguntou Heng.

- Eu não sei – disse ele.

– Estava embaixo da cama, ouvi um barulho terrível, saí para ver o que era e sem saber como, cheguei novamente à sala.

Os dois amigos voltaram a olhar para o quadro desde o início para se despedirem dele. Chu ia à frente; quando chegou no meio da parede, aquela jovem estava lá. Alta, elegante, os olhos como duas jabuticabas, a boca lembrava um morango maduro e ela colhia flores. Mas os seus cabelos não estavam mais penteados em tranças, agora eles formavam um coque na nuca, como era o costume das mulheres casadas, naquele lugar. Os dois amigos desceram as escadarias do templo em silêncio.

A chuva já tinha parado e eles foram embora sem dizer uma palavra. A viagem continua.

Desconhecido

Recolha de contos feita pela equipa da Biblioteca Escolar 

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Biblioteca Escolar - prioridades 2021-22

A nossa biblioteca escolar está alinhada com os objetivos e prioridades definidos pela Rede de Bibliotecas Escolares: biblioteca sempre presente para melhores aprendizagens!



domingo, 11 de julho de 2021

11ª edição Prémio António Manuel Couto Viana: poema vencedor

A Maria Inês Dias foi vencedora da 11ª edição do Prémio António Manuel Couto Viana, na modalidade de poesia, com o poema: 

Canto Quinto e Meio

Tu, oh titã rochoso,

Protetor das águas do fim do mundo.

Força intransponível

Que se impõe no caminho glorioso

Da vontade de el-rei D.João II

 

Sofres da mais humana das doenças:

A infeção da alma

Que sentir o amor demanda.

Encarcerado nessas paredes imensas

Choras porque ainda a amas.

 

Gigante, torna-te marinheiro

Desta maravilhosa frota;

Deste povo que quer fugir da derrota

Que é jazer na memória do mundo

Como nevoeiro.

 

Utiliza a dor que carregas

Para quebrar essas correntes de rocha e amargura.

E ajuda este povo que renegas,

Capaz de gravar o teu nome

Na épica escritura.

 

Com sal das tuas lágrimas,

Salga os nossos alimentos.

Com a tua ira tempestuosa,

Atiça o coração dos moribundos.

Do desassossego cria maravilhas.

 

Usa a dor como impulso para a glória.

A alma degredada,

Triste e atormentada

Como prego.

E o corpo flagelado

(Lousa em pele da nossa história)

Como martelo

Para pregares os caixões dos nossos inimigos.

 

Marinheiro de águas infernais,

O povo português sente a tua angústia.

E sendo mais do leme aqui do que eu,

Suplicamos-te, com a maior das bravuras e simpatia

Que Deus nos concedeu:

Abre os portões marítimos do Índico,

Deixando-nos passar.

 

E gravo aqui, através desta espada

E do sangue que por ela escorre,

Que te tornarás

No mais elevado símbolo de esperança

Da nação de Portugal.


sexta-feira, 30 de abril de 2021

Onde estava no 25 de abril?

 
Os alunos do K.Leio responderam mais uma vez ao desafio da professora Fátima Lopes no âmbito da disciplina de História. Desta vez, entrevistaram familiares, vizinhos e conhecidos sobre esse dia em que "emergimos da noite e do silêncio"*

Entrevistado: Álvaro Abreu

Entrevistador: Pedro Pipa

Onde estava no dia 25 de Abril? Do que se lembra desse dia?


Estava no Porto e lembro-me muito bem. Eu estava a cumprir o serviço militar na altura e tinha vindo a casa dormir. Acordei de manhã, aliás, fui acordado pela minha mãe a dizer que tinha ouvido na rádio que estava em curso um golpe militar, imediatamente vesti-me e fui para o hospital militar. As pessoas estavam diferentes na rua, eu rapidamente saí do hospital militar e vim para a baixa. Estava cheia de gente, algumas com cravos vermelhos na lapela, toda a gente queria saber notícias, se aquilo ia para a frente, se ia correr bem e se o golpe militar ia ter êxito. Havia uma sensação muito grande de liberdade e finalmente podíamos falar e manifestar-nos. Foi um dia extremamente importante e de uma grande alegria. Eu era muito novo, tinha 22 anos na altura. Aliás, eu estava à espera que houvesse um golpe militar, porque a nível militar sabia-se, nós lá dentro sabíamos que se estava a passar alguma coisa contra o regime e que ia haver um golpe militar. Tinha havido algumas manifestações por parte de alguns militares, o Costa Gomes, o Spínola, que tinha feito um livro que era o “Portugal e o Futuro” que atacava o regime, portanto, falava-se lá dentro que estava em preparação alguma coisa. Aliás já no dia 16 de março, teria havido uma tentativa de golpe que foi o Levantamento das Caldas e eu estava na altura em Lisboa e percebi isso, portanto aquilo não me apanhou muito de surpresa, eu estava a contar com aquilo, não sabia é que ia ser naquele dia.

Sentia que as pessoas tinham noção da ditadura em que viviam? Acha que as pessoas se apercebiam dos atos de censura?

Toda a gente tinha a noção de que vivíamos em ditadura, toda a gente sabia que não havia partidos políticos e que eles não eram permitidos, se havia eram clandestinos. Ouvia-se falar no Partido Comunista, que era um partido que vivia em clandestinidade, não havia eleições, havia umas farsas em que só votavam as pessoas que eram escolhidas e que o regime permitia, não havia liberdade de expressão, as pessoas não podiam falar, não se podiam manifestar, contra a guerra colonial ou contra o regime porque se fossem ouvidas por quem andava à escuta, os informadores da PIDE, que eram popularmente conhecidos por bufos, e se as pessoas fossem ouvidas iam ser incomodadas, a PIDE levava-as e interrogava-as para saber se estavam ligadas ao Partido Comunista ou se estavam ligados a alguma coisa que pusesse em causa o regime. Toda a gente sabia que havia censura, que tudo o que se ouvia era filtrado pela censura, as notícias nos jornais, na televisão, tudo era previamente revisto pela censura e só saía aquilo que eles queriam. Nós só ouvíamos aquilo que a censura queria.

Teve algum problema ou conheceu alguém que tivesse tido problemas com a PIDE?

Eu pessoalmente não tive, mas ouvia falar de muita gente que sabia que era presa pela PIDE.

Para já havia uma sensação de medo, toda a gente tinha medo, sabia-se que existiam bufos, havia informação sobre alguns que se sabia que eram e tínhamos medo de ser escutados, de falar, porque podíamos vir a ser incomodados, toda a gente tinha medo.

Conheci um barbeiro que era frequentemente preso, ouvia falar de uma sujeita que era muito conhecida no Porto, que era a engenheira Virgínia de Moura, que era frequentemente presa, a PIDE ia lá a casa, levava-os e eles desapareciam durante um tempo e eram muitas vezes incomodados. E falava-se de alguns pides, sabia-se que aquele e aquela eram pides, aquele e aquela eram informadores, portanto toda a gente sabia ou tinha conhecimento de pessoas que já tinham sido incomodadas pela PIDE.

Tem ideia de quem eram as pessoas mais conscientes daquilo que se passava em Portugal, do exercício da censura, da privação das liberdades, e de quem queria uma mudança de regime?

Sim, de uma maneira geral toda a gente sabia mais ou menos daquilo que já te disse. Sabia da existência da PIDE, da existência da censura, sabia que as pessoas eram incomodadas e toda a gente tinha noção disso. Eu não conhecia ninguém que não tivesse conhecimento sobre isso. Mas havia com certeza aqueles que estavam muito mais informados, que eram os mais indignados e que procuravam ter acesso a livros proibidos, a leituras de documentos proibidos. De vez em quando apareciam umas coisas pintadas na rua, nas paredes, as pichagens que de noite punham ou mesmo até panfletos. Havia sempre estes mais indignados que chegavam a ouvir emissões de rádio que eram emitidas no estrangeiro por portugueses que tinham fugido e que denunciavam pela rádio as irregularidades, o que se passava em Portugal, a guerra colonial, até denunciavam e indicavam que empregados de café, por exemplo, eram informadores da PIDE. Portanto havia na verdade pessoas que estavam muito mais informadas e, digamos, que se indignavam. Havia aqueles que lutavam contra o regime e que estavam ligados ao Partido Comunista, eu conheci alguns, e que lutavam mesmo contra o regime, alguns desapareceram, deixei de os ver, ou porque passaram para a clandestinidade ou porque foram presos, já não sei bem. Mas na verdade havia os que estavam mais informados, aqueles que se indignavam e procuravam, porque de uma maneira geral as pessoas tinham medo e, portanto, até tinham medo de saber e de ter conhecimento porque até isso poderia levar a que fossem ou que viessem a ser incomodados, depois havia aqueles que queriam mesmo lutar contra o regime e deitá-lo abaixo e que se organizavam, o Partido Comunista e noutras organizações, até na religião. A própria igreja católica tinha organizações que, de certa maneira, eram contra o regime, e que eram vigiadas pela PIDE, de vez em quando eles apareciam para saber o que é que eles estavam a dizer lá nas reuniões deles porque eles suspeitavam que estavam, digamos, a pronunciar-se, ou contra o regime ou contra a guerra colonial. Havia de facto, a todos os níveis, eu até conheci um padre, que foi meu professor de religião e moral no liceu e na escola, o padre Mário Pais, padre da Lixa, que foi preso e depois julgado, inclusivamente, que lutava contra o regime e era padre. Havia de facto pessoas que eram corajosas. O próprio bispo do Porto, D. António, que acabou por ter que se exilar porque ele manifestava-se contra o Salazar e teve que se exilar para o estrangeiro. Havia de facto pessoas que eram mais conscientes e indignadas e que não tinham medo de se assumir, publicamente, contra o regime, algumas até se organizavam mesmo contra o regime. O Partido Comunista, particularmente, penso que era aquele que na verdade, já desde décadas vinha a lutar contra o regime. Depois apareceu, perto do 25 de Abril, o partido Socialista, mas era sobretudo o Partido Comunista, esses eram na verdade as pessoas mais conscientes daquilo que se passava.

Como é que as pessoas viam a guerra colonial?

Ninguém sentia que aquilo fosse nosso. Isto no contacto que eu tinha, havia com certeza quem estivesse a favor. Mas a grande maioria era contra a guerra colonial e era pela independência das ex-colónias, para além da guerra colonial ter sido um drama, pelos mortos e também porque alguns não morreram, mas ficaram muito feridos e ficaram com cicatrizes graves da guerra. Havia quem fugisse, fugiam para o estrangeiro para não irem para a tropa, para não terem depois que ser mobilizados para irem combater na guerra colonial, portanto, de uma maneira geral, as pessoas eram contra a guerra colonial. Aliás, tinha-se a noção de que internacionalmente, Portugal estava isolado, portanto, no geral, era toda a gente contra Portugal, estávamos a fazer uma guerra perfeitamente injusta e a oprimir povos que eram os povos nativos.

Tinha a noção de que a oposição regime, ao fascismo, aumentava?

Ela foi aumentando.

Eu conhecia pessoas que eram ligadas ao Partido Comunista, portanto eu sabia que ela existia e que existia cada vez mais. Ia-se sentindo essa oposição a vários níveis, na rua, por exemplo, havia sempre, no 1º de Maio, manifestações e aparecia a PIDE e a polícia na rua, no dia 31 de janeiro, uma data célebre também no Porto, em que aparecia a PIDE e havia pessoas que se manifestavam. Falava-se muito contra o regime e cada vez mais e havia iniciativas públicas que eram aproveitadas para se manifestarem contra o regime. Uma delas era a Queima das Fitas, curiosamente. Na Queima das Fitas era muito comum haver manifestações contra o regime. E aparecia a Pide e prendia estudantes que se estavam a manifestar. E eu lembro-me que fui com um amigo uma vez que andava na Queima das Fitas, eu andava no liceu e ele foi preso. A Pide prendeu-o. Na verdade, sentia-se constantemente essa oposição, sentia-se popularmente, no meio do povo, mas ela provavelmente era reflexo da atividade política, particularmente do Partido Comunista porque era a mais importante e que era a temida pelo regime porque se havia mais alguma, fazia-lhes cócegas, não os incomodava, quem os incomodava e lhes fazia medo era o Partido Comunista. Sabia-se que ele existia e que conseguia através dos seus militantes que ninguém sabia quem eram porque eles eram clandestinos, ou andavam muito escondidos, mas conseguiam-se organizar e organizar as pessoas. Isto particularmente aqui no norte, porque houve mais para Sul, hoje sabe-se que houve greves, houve na Marinha Grande, havia no Alentejo manifestações em que houve mortos inclusivamente, Catarina Eufémia, etc, a gente sabe isso hoje, na altura não se sabia, não era possível saber, só alguns saberiam, a maioria não sabia. Mas sentia-se, sentia-se que havia oposição e que as pessoas sabiam que mais tarde ou mais cedo isto havia de cair, e caiu mesmo no dia 25 de Abril de 74.

Tinha alguma ideia do que se passava fora do país? Tinha ideia de como era diferente a vida em países da Europa como a França ou a Alemanha?

Sim, sabia-se, através dos emigrantes, aqueles que fugiam, ia-se sabendo, tinha-se notícias, as pessoas sabiam que a vida lá era completamente diferente, porque os próprios turistas que apareciam aqui, eu conheci alguns, até em Viana conheci uns franceses, contavam que havia partidos, as pessoas podiam falar, nós tínhamos a noção de que vivíamos numa ditadura, aqui sabíamos aonde, aqui e em Espanha também, com o Franco, mas que havia países, e tinha-se a noção, sobretudo no norte da Europa, que eram países livres, havia muita gente que fugia para lá, particularmente quem queria fugir do serviço militar, era muito comum fugirem para os países nórdicos, onde eram melhor recebidos. Aqueles que fugiam para ir trabalhar, fugiam para França, duma maneira geral. E havia informações a partir dessas pessoas que essas vidas eram completamente diferentes, eram sociedades completamente diferentes, as pessoas podiam falar, podiam-se manifestar, havia eleições, havia partidos, isso sabia-se claro.

E acha que se não fosse por essas pessoas conseguia saber alguma coisa?

Era muito mais difícil, de uma maneira ou de outra essas coisas iam-se sabendo, havia quem soubesse melhor, outros não sabiam, ou sabiam muito pouco. Também é preciso perceber que nas grandes cidades havia um relacionamento com um maior número de pessoas, particularmente com o estrangeiro, com turistas e conheciam pessoas que tinham estado lá fora, estavam muito mais bem informadas, é evidente que se tu começavas a ir para o interior, para aqueles cidades e para aquelas regiões agrícolas, as pessoas tinham muito pouca informação, sabiam muito pouco, onde havia os chamados caciques, aqueles que dominavam o comportamento e o pensamento das pessoas. Onde a Igreja também teve aí um papel importante, em apoio ao regime, porque lhes interessava isso.

Comparando o antes e o depois da revolução de Abril, quais foram as principais mudanças que observou?

As mudanças foram enormes. Para começar a sensação, a sensação de quem viveu o antes, o durante e o depois, foi uma sensação fantástica, uma sensação de liberdade, parecia que estávamos a viver num sítio completamente diferente, o ar era diferente, o ar que se respirava. As pessoas andavam à vontade, não precisavam de olhar para trás, nem para o lado a ver quem é que as estava a ouvir, as pessoas tinham mesmo a necessidade de se manifestar e dar a sua opinião sobre as coisas. Completamente diferente. A forma como se vivia ou se passou a viver. Passou-se a viver muito mais rápido, os acontecimentos eram muitos e até de uma forma descontrolada, às vezes. Vivia-se muito rapidamente, parecia que o tempo tinha acelerado. Foi um período extremamente interessante e continua a ser hoje em dia, apesar de tudo. Não tem comparação nenhuma o tempo que nós vivemos hoje com o tempo que se vivia antes, é impensável. Hoje, apesar de tudo, porque já existem hoje em dia alguns resquícios de censuras e coisas assim do género, em que já há quem queira que só sejam ouvidos aqueles que lhes convém e os outros são pouco ouvidos ou, pelo menos, não permitem que eles sejam tão ouvidos. Mas apesar de tudo há liberdade, há partidos, há eleições, as pessoas podem manifestar-se, dizer o que pensam. Mas é muito diferente, vive-se de uma forma completamente diferente, não tem comparação. Além do mais as injustiças sociais, que ainda hoje existem, mas incomparavelmente muito menos do que existiam antigamente. Antigamente havia um grupo de pessoas a quem tudo era permitido, e tudo tinham, e tudo podiam fazer e havia os outros que só faziam aquilo que eles queriam e viviam muito mal. E de facto a qualidade de vida melhorou imenso, apesar de não ser ainda grande coisa, se compararmos com os restantes países da Europa, mas comparando com aquilo que foi a forma como se vivia antes do 25 de Abril é incomparavelmente melhor, há muito menos pobreza, apesar de ainda existir e muito, era muitíssimo maior.

Foi destacado para a guerra?

Eu não fui porque houve o 25 de Abril se não teria sido, provavelmente. Aquilo era muito difícil não ser, quase toda a gente ia lá parar. Eu lembro-me que dizia na altura que, evacuados da guerra colonial eram cerca de 60 por semana, evacuados eram mortos ou feridos, o que era muita gente. Aquilo era uma desgraça completa. A juventude, os homens, sobretudo, porque eram eles que iam à guerra, tinham essa parte da vida completamente amputada, e alguns ficaram mesmo, definitivamente, ou porque morriam lá ou porque ficaram feridos, outros vieram com sequelas psicológicas horríveis, os traumas de guerra eram coisas horríveis. Eu conheci alguns, que se atiravam para o chão na rua, às vezes, ao mínimo ruído atiravam-se para o chão, era comum isso acontecer, houve uma altura em que se via muito isso. Foi terrível…

*Sophia de Mello Breyner Andresen, poema "Hoje é a madrugada que eu esperava"