No mês em que se comemora o Dia da Mundial da Alimentação, a equipa da biblioteca fez uma recolha de excertos de obras da Literatura Portuguesa.
Deste enlevo nos arrancou o
Melchior com o doce aviso do “jantarinho de suas incelências”. Era noutra sala,
mais nua, mais abandonada: - e aí logo à porta o meu supercivilizado Príncipe
estacou, estarrecido pelo desconforto, e escassez e rudeza das coisas. (...)
Jacinto ocupou a sede ancestral –
e durante momentos (de esgazeada ansiedade para o caseiro excelente) esfregou
energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a fosca colher de estanho.
Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e rescendia. Provou – e
levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam,
surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E
sorriu, com espanto: - “Está bom!”
Estava precioso: tinha fígado e
tinha moela; o seu perfume enternecia; três vezes, fervorosamente, ataquei
aquele caldo.
-Também lá volto! – exclamava
Jacinto com uma convicção imensa. – É que estou com uma fome... Santo Deus! Há
anos que não sinto esta fome.
Foi ele que rapou avaramente a
sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça
de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado – e
pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que
desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominava favas!... Tentou todavia uma
garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara,
luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão
de frade que se regala. Depois um brado:
-Óptimo!... Ah, destas favas,
sim! Ó que fava! Que delícia! (...)
- Pois é cá a comidinha dos moços
da Quinta! E cada pratada, que até suas Incelências se riam... Mas agora, aqui,
o Sr. D. Jacinto, também vai engordar e enrijar!
Eça de Queiroz, in A Cidade e as
Serras
DE TARDE
Naquele
«pic-nic» de burguesas,
Houve uma
coisa simplesmente bela,
E que, sem
ter história nem grandezas,
Em todo o
caso dava uma aguarela.
Foi quando
tu, descendo do burrico,
Foste
colher, sem imposturas tolas,
A um
granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete
rubro de papoulas.
Pouco
depois, em cima duns penhascos,
Nós
acampámos, inda o sol se via;
E houve
talhadas de melão, damascos,
E pão de ló
molhado em malvasia.
Mas, todo
púrpuro, a sair da renda
Dos teus
dois seios como duas rolas,
Era o
supremo encanto da merenda
O ramalhete
rubro das papoulas.
Cesário Verde, De tarde
NUM BAIRRO
MODERNO
[…]
Subitamente
- que visão de artista! -
Se eu
transformasse os simples vegetais,
À luz do
Sol, o intenso colorista,
Num ser humano
que se mova e exista
Cheio de
belas proporções carnais?!
Bóiam
aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz
às costas, e vergando,
Sobem
padeiros, claros de farinha;
E às portas,
uma ou outra campainha
Toca,
frenética, de vez em quando.
E eu
recompunha, por anatomia,
Um novo
corpo orgânico, aos bocados.
Achava os
tons e as formas. Descobria
Uma cabeça
numa melancia,
E nuns
repolhos seios injetados.
As
azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e
unidas, entre verdes folhos,
São tranças
dum cabelo que se ajeite;
E os nabos -
ossos nus, da cor do leite,
E os cachos
de uvas - os rosários de olhos.
Há colos,
ombros, bocas, um semblante
Nas posições
de certos frutos. E entre
As
hortaliças, túmido, fragrante,
Como alguém
que tudo aquilo jante,
Surge um
melão, que lembrou um ventre.
E, como um
feto, enfim, que se dilate,
Vi nos
legumes carnes tentadoras,
Sangue na
ginja vívida, escarlate,
Bons
corações pulsando no tomate
E dedos
hirtos, rubros, nas cenouras.
O Sol
dourava o céu. E a regateira,
Como vendera
a sua fresca alface
E dera o
ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se,
gritou-me, prazenteira:
"Não
passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!..."
[…]
Cesário Verde, Num bairro moderno
Durante um momento o Sr. Sousa Neto ficou como
desorganizado. Depois passou o guardanapo sobre os beiços, preparou-se, encarou
o Ega.
- Então Vossa Excelência, nessa idade, com a sua
inteligência, não acredita no progresso?
- Eu não, senhor.
O conde interveio, afável e risonho:
- O nosso Ega quer fazer simplesmente um paradoxo.
E tem razão, tem realmente razão, porque os faz brilhantes …
Estava-se servindo jambon aux épinards. Durante um momento falou-se de paradoxos.
Segundo o conde, quem os fazia também brilhantes e difíceis de sustentar,
excessivamente difíceis, era o Barros, o ministro do Reino …
Eça de Queirós, in Os Maias (Capítulo XII)
Todos
cortesmente admiraram a finura do Cohen. Ele agradecia, com o olho enternecido,
passando pelas suíças a mão onde reluzia um diamante. E nesse momento os
criados serviam um prato de ervilhas num molho branco, murmurando:
- Petits pois à la Cohen.
À
la Cohen? Cada um verificou o seu menu mais atentamente. E lá estava, era o
legume: Petits pois à la Cohen.
Dâmaso, entusiasmado, declarou isto «chique a valer». E fez-se, com o champanhe
que se abria, a primeira saúde ao Cohen.
Eça de Queirós, in Os Maias (Capítulo VI)
Quando Blimunda acorda, estende a mão para o
saquitel onde costuma guardar o pão, pendurado à cabeceira, e acha apenas o
lugar. Tacteia o chão, a enxerga, mete a mão por baixo da travesseira, e então
ouve Baltasar dizer, Não procures mais, não encontrarás, e ela, cobrindo os
olhos com os punhos cerrados, implora, Dá-me o pão, Baltasar, dá-me o pão, por
alma de quem lá tenhas, Primeiro me terás de dizer que segredos são estes, Não
posso, gritou ela, e bruscamente tentou rolar para fora da enxerga, mas Sete-Sóis
deitou-lhe o braço são, prendeu-a pela cintura, ela debateu-se brava, depois
passou-lhe a perna direita por cima, e, assim libertada a mão, quis afastar-lhe
os punhos dos olhos, mas ela tornou a gritar, espavorida, Não me faças isso, e
foi o grito tal que Baltasar a largou, assustado, quase arrependido da
violência, Eu não te quero fazer mal, só queria saber que mistérios são, Dá-me
o pão, e eu digo-te tudo, Juras, Para que serviriam juras se não bastassem o
sim e o não, Aí tens, come, e Baltasar tirou o taleigo de dentro do alforge que
lhe servia de travesseira.
Cobrindo o rosto com o antebraço, Blimunda comeu enfim o
pão. Mastigava devagar. Quando terminou, deu um grande suspiro e abriu os
olhos. A luz cinzenta do quarto amanheceu de azul para aqueles lados, assim
pensaria Baltasar se tivesse aprendido a pensar coisas destas, mas melhor que
pensar finezas que poderiam servir nas antecâmaras da corte ou nos palratórios
das freiras, foi sentir o calor do seu próprio sangue quando Blimunda se virou
para ele, os olhos agora escuros, e de repente uma luz verde passando, que
importavam agora os segredos, melhor seria tornar a aprender o que já sabia, o
corpo de Blimunda, ficará para outra ocasião, porque esta mulher, tendo
prometido, vai cumprir, e diz, Lembras-te da primeira vez que dormiste comigo,
teres dito que te olhei por dentro, Lembro-me, Não sabias o que estavas a
dizer, nem soubeste o que estavas a ouvir quando eu te disse que nunca te
olharia por dentro. Baltasar não teve tempo de responder, ainda procurava o
sentido das palavras, e outras já se ouviam no quarto, incríveis, Eu posso
olhar por dentro das pessoas.
José Saramago, in Memorial do Convento (Capítulo VIII)
No lugar onde costumavam vender o trigo, andavam homens e moços
esgaravatando a terra; e, se achavam alguns grãos de trigo, metiam-nos na boca,
sem tendo outro mantimento; outros se fartavam de ervas e bebiam tanta água que
achavam mortos homens e cachopos jazer inchados nas praças e em outros lugares.
Das carnes, isso também, havia em ela grande míngua; e se alguns
criavam porcos, mantinham-se em eles; e pequena posta de porco valia cinco e
seis libras, que era uma obra castelã; e a galinha quarenta soldos; e a dúzia
dos ovos, doze soldos; [...].
Assim que os pobres, por míngua de dinheiro, não comiam carne e
padeciam mal. E começaram de comer as carnes das bestas, e não somente os
pobres e minguados, mas grandes pessoas da cidade, lazerando [enfraquecendo],
não sabiam que fazer; e os gestos [rostos] mudados com fome bem mostravam seus
encobertos padecimentos.
Andavam os moços de três e oitenta anos pedindo pão pela cidade, por
amor de Deus, como lhes ensinavam suas madres [mães]; e muitos não tinham outra
coisa que lhes dar senão lágrimas que com eles choravam, que era triste coisa
de ver; e, se lhes davam tamanho pão como uma noz, haviam-no por grande bem.
Desfalecia o leite àquelas que tinham crianças a seus peitos, por
míngua de mantimentos; e, vendo lazerar [sofrer] seus filhos, a que acorrer não
podiam, choravam amiúde [frequentemente] sobre eles a morte, antes que os a
morte privasse da vida [...].
Fernão Lopes, in Crónica de D. João I (Capítulo CXLVIII)