terça-feira, 8 de outubro de 2019

O que se come na nossa literatura

O que se come na nossa literatura?
No mês em que se comemora o Dia da Mundial da Alimentação, a equipa da biblioteca fez uma recolha de excertos de obras da Literatura Portuguesa.



Deste enlevo nos arrancou o Melchior com o doce aviso do “jantarinho de suas incelências”. Era noutra sala, mais nua, mais abandonada: - e aí logo à porta o meu supercivilizado Príncipe estacou, estarrecido pelo desconforto, e escassez e rudeza das coisas. (...)
Jacinto ocupou a sede ancestral – e durante momentos (de esgazeada ansiedade para o caseiro excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a fosca colher de estanho. Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e rescendia. Provou – e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: - “Está bom!”
Estava precioso: tinha fígado e tinha moela; o seu perfume enternecia; três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.
-Também lá volto! – exclamava Jacinto com uma convicção imensa. – É que estou com uma fome... Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.
Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado – e pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominava favas!... Tentou todavia uma garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado:
-Óptimo!... Ah, destas favas, sim! Ó que fava! Que delícia! (...)
- Pois é cá a comidinha dos moços da Quinta! E cada pratada, que até suas Incelências se riam... Mas agora, aqui, o Sr. D. Jacinto, também vai engordar e enrijar!

Eça de Queiroz, in A Cidade e as Serras




DE TARDE

Naquele «pic-nic» de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas.

Cesário Verde, De tarde


NUM BAIRRO MODERNO
[…]
Subitamente - que visão de artista! -
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!

Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.

E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injetados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas - os rosários de olhos.

Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como alguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

O Sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me, prazenteira:
"Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!..."
[…]
Cesário Verde, Num bairro moderno


 Ega declarou muito decididamente ao Sr. Sousa Neto que era pela escravatura. Os desconfortos da vida, segundo ele, tinham começado com a libertação dos negros. Só podia ser seriamente obedecido, quem era seriamente temido … Por isso ninguém agora lograva ter os seus sapatos bem envernizados, o seu arroz bem cozido, a sua escada bem lavada, desde que não tinha criados pretos em quem fosse lícito dar vergastadas … Só houvera duas civilizações em que o homem conseguira viver com razoável comodidade: a civilização romana e a civilização especial dos plantadores da Nova Orleães. Porquê? Porque numa e noutra existira a escravatura absoluta, a sério, com o direito de morte! …
Durante um momento o Sr. Sousa Neto ficou como desorganizado. Depois passou o guardanapo sobre os beiços, preparou-se, encarou o Ega.
- Então Vossa Excelência, nessa idade, com a sua inteligência, não acredita no progresso?
- Eu não, senhor.
O conde interveio, afável e risonho:
- O nosso Ega quer fazer simplesmente um paradoxo. E tem razão, tem realmente razão, porque os faz brilhantes …
Estava-se servindo jambon aux épinards. Durante um momento falou-se de paradoxos. Segundo o conde, quem os fazia também brilhantes e difíceis de sustentar, excessivamente difíceis, era o Barros, o ministro do Reino …

Eça de Queirós, in Os Maias (Capítulo XII)


               Todos cortesmente admiraram a finura do Cohen. Ele agradecia, com o olho enternecido, passando pelas suíças a mão onde reluzia um diamante. E nesse momento os criados serviam um prato de ervilhas num molho branco, murmurando:
                - Petits pois à la Cohen.
                À la Cohen? Cada um verificou o seu menu mais atentamente. E lá estava, era o legume: Petits pois à la Cohen. Dâmaso, entusiasmado, declarou isto «chique a valer». E fez-se, com o champanhe que se abria, a primeira saúde ao Cohen.

Eça de Queirós, in Os Maias (Capítulo VI)



Quando Blimunda acorda, estende a mão para o saquitel onde costuma guardar o pão, pendurado à cabeceira, e acha apenas o lugar. Tacteia o chão, a enxerga, mete a mão por baixo da travesseira, e então ouve Baltasar dizer, Não procures mais, não encontrarás, e ela, cobrindo os olhos com os punhos cerrados, implora, Dá-me o pão, Baltasar, dá-me o pão, por alma de quem lá tenhas, Primeiro me terás de dizer que segredos são estes, Não posso, gritou ela, e bruscamente tentou rolar para fora da enxerga, mas Sete-Sóis deitou-lhe o braço são, prendeu-a pela cintura, ela debateu-se brava, depois passou-lhe a perna direita por cima, e, assim libertada a mão, quis afastar-lhe os punhos dos olhos, mas ela tornou a gritar, espavorida, Não me faças isso, e foi o grito tal que Baltasar a largou, assustado, quase arrependido da violência, Eu não te quero fazer mal, só queria saber que mistérios são, Dá-me o pão, e eu digo-te tudo, Juras, Para que serviriam juras se não bastassem o sim e o não, Aí tens, come, e Baltasar tirou o taleigo de dentro do alforge que lhe servia de travesseira.
Cobrindo o rosto com o antebraço, Blimunda comeu enfim o pão. Mastigava devagar. Quando terminou, deu um grande suspiro e abriu os olhos. A luz cinzenta do quarto amanheceu de azul para aqueles lados, assim pensaria Baltasar se tivesse aprendido a pensar coisas destas, mas melhor que pensar finezas que poderiam servir nas antecâmaras da corte ou nos palratórios das freiras, foi sentir o calor do seu próprio sangue quando Blimunda se virou para ele, os olhos agora escuros, e de repente uma luz verde passando, que importavam agora os segredos, melhor seria tornar a aprender o que já sabia, o corpo de Blimunda, ficará para outra ocasião, porque esta mulher, tendo prometido, vai cumprir, e diz, Lembras-te da primeira vez que dormiste comigo, teres dito que te olhei por dentro, Lembro-me, Não sabias o que estavas a dizer, nem soubeste o que estavas a ouvir quando eu te disse que nunca te olharia por dentro. Baltasar não teve tempo de responder, ainda procurava o sentido das palavras, e outras já se ouviam no quarto, incríveis, Eu posso olhar por dentro das pessoas. 

José Saramago, in Memorial do Convento (Capítulo VIII)


 Na cidade não havia trigo para vender e, se o havia, era mui pouco e tão caro que as pobres gentes não podiam chegar a ele [...]. E começaram de comer pão de bagaço de azeitona, e dos queijos das malvas e das raízes de ervas e de outras desacostumadas coisas, pouco amigas da natureza; e tais havia que se mantinham em alféloa [melaço].
No lugar onde costumavam vender o trigo, andavam homens e moços esgaravatando a terra; e, se achavam alguns grãos de trigo, metiam-nos na boca, sem tendo outro mantimento; outros se fartavam de ervas e bebiam tanta água que achavam mortos homens e cachopos jazer inchados nas praças e em outros lugares.
Das carnes, isso também, havia em ela grande míngua; e se alguns criavam porcos, mantinham-se em eles; e pequena posta de porco valia cinco e seis libras, que era uma obra castelã; e a galinha quarenta soldos; e a dúzia dos ovos, doze soldos; [...].
Assim que os pobres, por míngua de dinheiro, não comiam carne e padeciam mal. E começaram de comer as carnes das bestas, e não somente os pobres e minguados, mas grandes pessoas da cidade, lazerando [enfraquecendo], não sabiam que fazer; e os gestos [rostos] mudados com fome bem mostravam seus encobertos padecimentos.
Andavam os moços de três e oitenta anos pedindo pão pela cidade, por amor de Deus, como lhes ensinavam suas madres [mães]; e muitos não tinham outra coisa que lhes dar senão lágrimas que com eles choravam, que era triste coisa de ver; e, se lhes davam tamanho pão como uma noz, haviam-no por grande bem.
Desfalecia o leite àquelas que tinham crianças a seus peitos, por míngua de mantimentos; e, vendo lazerar [sofrer] seus filhos, a que acorrer não podiam, choravam amiúde [frequentemente] sobre eles a morte, antes que os a morte privasse da vida [...].

Fernão Lopes, in Crónica de D. João I (Capítulo CXLVIII)