segunda-feira, 4 de outubro de 2021

MIBE 2021: A Mulher-esqueleto

 

Publicamos durante o mês de outubro uma recolha de contos feita no âmbito da comemoração do Mês Internacional da Biblioteca Escolar.

A Mulher-esqueleto

- Canadá -


Ela tinha feito alguma coisa que o pai não aprovava, embora ninguém mais se lembrasse do que tinha sido. O pai, no entanto, tinha-a arrastado até aos penhascos, atirando-a ao mar. Lá, os peixes devoraram a sua carne e arrancaram os seus olhos. Enquanto jazia no fundo do mar, o seu esqueleto rolou muitas vezes com as correntes.

Um dia um pescador veio pescar. Bem, na verdade, em outros tempos muitos costumavam vir a essa baía pescar. Esse pescador, porém, estava afastado da sua colónia e não sabia que os pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegação de que a enseada era mal-assombrada.

O anzol do pescador foi descendo pela água abaixo e prendeu-se — logo em quê! — nos ossos das costelas da Mulher-esqueleto.

O pescador pensou: “Ah, agora apanhei um grande de verdade! Agora apanhei um mesmo!” Na sua imaginação, ele já via quantas pessoas esse peixe enorme iria alimentar, quanto tempo a sua carne duraria, quanto tempo ele se veria livre da obrigação de pescar. E enquanto ele lutava com esse enorme peso na ponta do anzol, o mar encapelou-se com uma espuma agitada, e o caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá em baixo lutava para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. Não importa o que fizesse, ela estava a ser inexoravelmente arrastada para a superfície, puxada pelos ossos das próprias costelas.

O pescador tinha-se voltado para recolher a rede e, por isso, não viu a cabeça calva surgir acima das ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nas órbitas do crânio; não viu os crustáceos nos velhos dentes de marfim. Quando ele se voltou com a rede nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que estava, já tinha chegado à superfície e caía suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos.

— Ah! — gritou o homem, e o seu coração afundou até aos joelhos, os seus olhos esconderam-se apavorados no fundo da cabeça e as suas orelhas arderam num vermelho forte.

— Ah! — berrou ele, soltando-a da proa com o remo e começando a remar loucamente na direção da terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua linha, ele ficou ainda mais assustado, pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo o tempo todo até à praia. Não importava de que forma ele desviasse o caiaque, ela continuava ali atrás. A sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e os seus braços agitavam-se como se quisessem agarrá-lo para levá-lo para as profundezas.

— Aaaahhhh! — uivava ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um salto ele estava fora da embarcação e saía a correr agarrado à vara de pescar. E o cadáver branco da Mulher-esqueleto, ainda preso à linha de pescar, vinha aos solavancos bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela acompanhou-o. Ele atravessou a tundra gelada, e ela não se distanciou. Ele passou por cima da carne que tinha deixado a secar, rachando-a em pedaços com as passadas dos seus mukluks.

Ela continuou sempre atrás dele, na verdade até apanhou um pedaço do peixe congelado enquanto era arrastada. E logo começou a comer, porque há muito, muito tempo não se saciava. Finalmente, o homem chegou ao seu iglu, enfiou-se no túnel e, de quatro, engatinhou de qualquer modo para dentro. Ofegante e soluçante, ele ficou ali deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, um tambor enorme. Afinal, estava seguro, ah, tão seguro, é, seguro, graças aos deuses, Raven, é, graças a Raven, é, e também à toda-generosa Sedna, em segurança, afinal.

Imaginem quando ele acendeu a sua lamparina de óleo de baleia, ali estava ela — aquilo — num monte no chão de neve, com um calcanhar sobre um ombro, um joelho preso nas costelas, um pé por cima do cotovelo. Mais tarde ele não saberia dizer o que realmente aconteceu. Talvez a luz tivesse suavizado as suas feições; talvez fosse o facto de ele ser um homem solitário. Mas a sua respiração ganhou um quê de delicadeza, bem devagar ele estendeu as mãos encardidas e, falando baixinho como a mãe fala com o filho, começou a soltá-la da linha de pescar.

— Oh, na, na, na. — Ele primeiro soltou os dedos dos pés, depois os tornozelos.

— Oh, na, na, na. — Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para aquecê-la, já que os ossos da Mulher-esqueleto eram iguaizinhos aos de um ser humano.

Ele procurou a pederneira na bainha de couro e usou um pouco do próprio cabelo para acender mais um foguinho. Ficou a olhar para ela de vez em quando enquanto passava óleo na preciosa madeira da sua vara de pescar e enrolava novamente a sua linha de seda. E ela, no meio das peles, não pronunciava palavra — não tinha coragem — para que o caçador não a levasse lá para fora e a lançasse lá em baixo nas pedras, quebrando totalmente os seus ossos.

O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava a sonhar. Às vezes, quando os seres humanos dormem, acontece de uma lágrima escapar do olho de quem sonha. Nunca sabemos que tipo de sonho provoca isso, mas sabemos que ou é um sonho de tristeza ou de anseio. E foi isso o que aconteceu com o homem.

A Mulher-esqueleto viu o brilho da lágrima à luz do fogo, e de repente ela sentiu uma sede daquelas. Ela aproximou-se do homem que dormia, rangendo e retinindo, e pôs a boca junto à lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, que ela bebeu, bebeu e bebeu até saciar a sede de tantos anos.

Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a mão para dentro do homem que dormia e retirou o coração, aquele tambor forte. Sentou-se e começou a bater dos dois lados do coração:

Bom, Bomm!… Bom, Bomm!

Enquanto marcava o ritmo, ela começou a cantar em voz alta.

— Carne, carne, carne! Carne, carne, carne! — E quanto mais cantava, mais o seu corpo se revestia de carne. Ela cantou para ter cabelo, olhos saudáveis e mãos boas e gordas. Ela cantou para ter a divisão entre as pernas e seios compridos o suficiente para se enrolarem e dar calor, e todas as coisas que as mulheres precisam.

Quando estava pronta, ela também cantou para despir o homem que dormia e enfiou-se na cama com ele, a pele de um tocava a do outro. Ela devolveu o grande tambor, o coração, ao corpo dele, e foi assim que acordaram, abraçados um ao outro, entrelaçados na noite, agora de outro modo, de um modo bom e duradouro.

Desconhecido

Recolha de contos feita pela equipa da Biblioteca Escolar

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