"Quatro Horas" foi um dos textos vencedores do Concurso de Escrita Era uma Vez..., dinamizado pela biblioteca escolar no âmbito da comemoração do Mês Internacional das Bibliotecas Escolares. É um conto da autoria da Raquel Soares do 12º I.
Era de madrugada e o tempo parecia ter estagnado.
Um corpo no chão estendido, qual seria o seu nome? Ao lado, uma faca em repouso, como se descansasse após os cansativos e sucessivos golpes que causara. Envolto por estilhaços de vidro, um relógio que parara nas quatro horas.
Passou exatamente um ano. Abro hoje novamente o arquivo, já coberto de poeira de três dias, enquanto penso onde fui buscar coragem para tal.
- Quem terá sido o autor deste crime? – interrogo-me – E porquê?
As fotografias do local do crime perturbam-me. Começo a ouvir gritos agonizantes mal os meus olhos recaem sobre elas.
- De onde estão a vir estes gritos? – questiono enquanto olho pela janela embaciada do meu escritório, ao tentar perceber a origem de tais barulhos – Estranho, não está ninguém lá fora…
Há um ano surgira-me uma vontade de viajar para outro país. Agora que regressei, era a minha primeira hora oficial naquela casa, que só tinha sido pisada pelos meus pés e me conhecido como seu dono curiosamente no dia anterior ao crime.
A noite inspira-me a sair, apesar do frio. Decido estudar o caso no local do crime – fica a cerca de dez minutos de minha casa -, na esperança de que isso me ajude de algum modo.
Contei os passos até lá: foram exatamente 1990 – coincidência ou não, é também o ano em que a vítima nascera.
- Este local não me é estranho… terei já vindo aqui alguma vez?
Analiso o espaço em redor e avisto, distante, um segurança a fixar-me por entre umas grades, com um olhar desconcertante, olhar esse que, à medida que me ia aproximando dele, se enchia de uma raiva cada vez mais profunda.
- Boa noite, sou o inspetor aqui da…
- Não tenho tempo para conversas! – interrompeu – Além do mais, conversas consigo…
Com estas palavras, irrompeu pela porta da cabine e desapareceu.
«Que teria feito eu para ouvir tais palavras?» era o pensamento que se apoderava da minha cabeça no regresso a casa.
Acomodei-me no meu cadeirão, ainda a refletir sobre o que tinha acontecido.
Dirigi-me até à cozinha para preparar um café – a noite prometia ser longa.
- Como é bom regressar! – desabafo comigo próprio.
Paro a tentar lembrar-me o porquê de estar na cozinha.
- Pois é, o café!
O chiar da chaleira confundia-se já com os gritos que ainda ecoavam na minha cabeça desde que olhara para as fotografias.
Levanto a cabeça e reparo que o grande relógio de parede marcava quatro horas.
Para além de algum género de condição que me causa esquecimentos, tenho o hábito de certificar-me que está tudo no lugar. Esse é apenas um dos muitos hábitos que me atormentam o dia. Tento sempre achar um padrão matemático em tudo.
Ao abrir a gaveta dos talheres, apercebo-me da falta de um deles – uma caixa no canto da cozinha indicava que eram 20 talheres no total, e só lá estavam 19.
- Talvez o tenha perdido no dia das mudanças.
Volto ao caso, de chávena na mão, desta vez mais determinado a descobrir algum tipo de sentido.
- São quatro horas...
Fico em silêncio, à minha frente o espelho da sala de estar. De um momento para o outro, a chávena em cacos no chão, o espelho em mil pedaços de azar.
- Faço o café todos os dias por esta hora. Preciso de uma colher para o mexer. Abro a gaveta para a tirar e reparo que uma faca está em falta, há já um ano. A loiça por lavar, há já um ano. 1990 passos contados. Um segurança a julgar-me e a pouco colaborar. Deve ter presenciado tudo e receia o que lhe pode acontecer… Os gritos na minha cabeça, o local familiar… eram 20 talheres, foram 20 as facadas… A minha suposta viagem espontânea horas depois do crime… Tudo alinha perfeitamente, todos os meus lapsos de memória…
Apago as luzes e debruço-me sobre a mesa.
É de madrugada e o tempo voltara a estagnar.
Agora só oiço o bater do meu coração acelerado e gritos, desta vez gritos reais, os meus próprios gritos.
Sinto dor e agonia pela primeira vez na minha vida.
- É isto que as vítimas sentem? A vida a escapar-lhes? Nada poderem fazer? Nada poderem controlar? – murmuro em soluços, ao mesmo tempo que seguro um pedaço do espelho e olho para a minha alma através dos meus olhos – ou a falta dela.
Tenho medo de mim e do que me vai acontecer. Tenho medo de lidar comigo dentro de um cubículo que me limita a liberdade por não sei quantos anos.
Fui eu o assassino.
Sem comentários:
Enviar um comentário