sexta-feira, 30 de abril de 2021

Onde estava no 25 de abril?

 
Os alunos do K.Leio responderam mais uma vez ao desafio da professora Fátima Lopes no âmbito da disciplina de História. Desta vez, entrevistaram familiares, vizinhos e conhecidos sobre esse dia em que "emergimos da noite e do silêncio"*

Entrevistado: Álvaro Abreu

Entrevistador: Pedro Pipa

Onde estava no dia 25 de Abril? Do que se lembra desse dia?


Estava no Porto e lembro-me muito bem. Eu estava a cumprir o serviço militar na altura e tinha vindo a casa dormir. Acordei de manhã, aliás, fui acordado pela minha mãe a dizer que tinha ouvido na rádio que estava em curso um golpe militar, imediatamente vesti-me e fui para o hospital militar. As pessoas estavam diferentes na rua, eu rapidamente saí do hospital militar e vim para a baixa. Estava cheia de gente, algumas com cravos vermelhos na lapela, toda a gente queria saber notícias, se aquilo ia para a frente, se ia correr bem e se o golpe militar ia ter êxito. Havia uma sensação muito grande de liberdade e finalmente podíamos falar e manifestar-nos. Foi um dia extremamente importante e de uma grande alegria. Eu era muito novo, tinha 22 anos na altura. Aliás, eu estava à espera que houvesse um golpe militar, porque a nível militar sabia-se, nós lá dentro sabíamos que se estava a passar alguma coisa contra o regime e que ia haver um golpe militar. Tinha havido algumas manifestações por parte de alguns militares, o Costa Gomes, o Spínola, que tinha feito um livro que era o “Portugal e o Futuro” que atacava o regime, portanto, falava-se lá dentro que estava em preparação alguma coisa. Aliás já no dia 16 de março, teria havido uma tentativa de golpe que foi o Levantamento das Caldas e eu estava na altura em Lisboa e percebi isso, portanto aquilo não me apanhou muito de surpresa, eu estava a contar com aquilo, não sabia é que ia ser naquele dia.

Sentia que as pessoas tinham noção da ditadura em que viviam? Acha que as pessoas se apercebiam dos atos de censura?

Toda a gente tinha a noção de que vivíamos em ditadura, toda a gente sabia que não havia partidos políticos e que eles não eram permitidos, se havia eram clandestinos. Ouvia-se falar no Partido Comunista, que era um partido que vivia em clandestinidade, não havia eleições, havia umas farsas em que só votavam as pessoas que eram escolhidas e que o regime permitia, não havia liberdade de expressão, as pessoas não podiam falar, não se podiam manifestar, contra a guerra colonial ou contra o regime porque se fossem ouvidas por quem andava à escuta, os informadores da PIDE, que eram popularmente conhecidos por bufos, e se as pessoas fossem ouvidas iam ser incomodadas, a PIDE levava-as e interrogava-as para saber se estavam ligadas ao Partido Comunista ou se estavam ligados a alguma coisa que pusesse em causa o regime. Toda a gente sabia que havia censura, que tudo o que se ouvia era filtrado pela censura, as notícias nos jornais, na televisão, tudo era previamente revisto pela censura e só saía aquilo que eles queriam. Nós só ouvíamos aquilo que a censura queria.

Teve algum problema ou conheceu alguém que tivesse tido problemas com a PIDE?

Eu pessoalmente não tive, mas ouvia falar de muita gente que sabia que era presa pela PIDE.

Para já havia uma sensação de medo, toda a gente tinha medo, sabia-se que existiam bufos, havia informação sobre alguns que se sabia que eram e tínhamos medo de ser escutados, de falar, porque podíamos vir a ser incomodados, toda a gente tinha medo.

Conheci um barbeiro que era frequentemente preso, ouvia falar de uma sujeita que era muito conhecida no Porto, que era a engenheira Virgínia de Moura, que era frequentemente presa, a PIDE ia lá a casa, levava-os e eles desapareciam durante um tempo e eram muitas vezes incomodados. E falava-se de alguns pides, sabia-se que aquele e aquela eram pides, aquele e aquela eram informadores, portanto toda a gente sabia ou tinha conhecimento de pessoas que já tinham sido incomodadas pela PIDE.

Tem ideia de quem eram as pessoas mais conscientes daquilo que se passava em Portugal, do exercício da censura, da privação das liberdades, e de quem queria uma mudança de regime?

Sim, de uma maneira geral toda a gente sabia mais ou menos daquilo que já te disse. Sabia da existência da PIDE, da existência da censura, sabia que as pessoas eram incomodadas e toda a gente tinha noção disso. Eu não conhecia ninguém que não tivesse conhecimento sobre isso. Mas havia com certeza aqueles que estavam muito mais informados, que eram os mais indignados e que procuravam ter acesso a livros proibidos, a leituras de documentos proibidos. De vez em quando apareciam umas coisas pintadas na rua, nas paredes, as pichagens que de noite punham ou mesmo até panfletos. Havia sempre estes mais indignados que chegavam a ouvir emissões de rádio que eram emitidas no estrangeiro por portugueses que tinham fugido e que denunciavam pela rádio as irregularidades, o que se passava em Portugal, a guerra colonial, até denunciavam e indicavam que empregados de café, por exemplo, eram informadores da PIDE. Portanto havia na verdade pessoas que estavam muito mais informadas e, digamos, que se indignavam. Havia aqueles que lutavam contra o regime e que estavam ligados ao Partido Comunista, eu conheci alguns, e que lutavam mesmo contra o regime, alguns desapareceram, deixei de os ver, ou porque passaram para a clandestinidade ou porque foram presos, já não sei bem. Mas na verdade havia os que estavam mais informados, aqueles que se indignavam e procuravam, porque de uma maneira geral as pessoas tinham medo e, portanto, até tinham medo de saber e de ter conhecimento porque até isso poderia levar a que fossem ou que viessem a ser incomodados, depois havia aqueles que queriam mesmo lutar contra o regime e deitá-lo abaixo e que se organizavam, o Partido Comunista e noutras organizações, até na religião. A própria igreja católica tinha organizações que, de certa maneira, eram contra o regime, e que eram vigiadas pela PIDE, de vez em quando eles apareciam para saber o que é que eles estavam a dizer lá nas reuniões deles porque eles suspeitavam que estavam, digamos, a pronunciar-se, ou contra o regime ou contra a guerra colonial. Havia de facto, a todos os níveis, eu até conheci um padre, que foi meu professor de religião e moral no liceu e na escola, o padre Mário Pais, padre da Lixa, que foi preso e depois julgado, inclusivamente, que lutava contra o regime e era padre. Havia de facto pessoas que eram corajosas. O próprio bispo do Porto, D. António, que acabou por ter que se exilar porque ele manifestava-se contra o Salazar e teve que se exilar para o estrangeiro. Havia de facto pessoas que eram mais conscientes e indignadas e que não tinham medo de se assumir, publicamente, contra o regime, algumas até se organizavam mesmo contra o regime. O Partido Comunista, particularmente, penso que era aquele que na verdade, já desde décadas vinha a lutar contra o regime. Depois apareceu, perto do 25 de Abril, o partido Socialista, mas era sobretudo o Partido Comunista, esses eram na verdade as pessoas mais conscientes daquilo que se passava.

Como é que as pessoas viam a guerra colonial?

Ninguém sentia que aquilo fosse nosso. Isto no contacto que eu tinha, havia com certeza quem estivesse a favor. Mas a grande maioria era contra a guerra colonial e era pela independência das ex-colónias, para além da guerra colonial ter sido um drama, pelos mortos e também porque alguns não morreram, mas ficaram muito feridos e ficaram com cicatrizes graves da guerra. Havia quem fugisse, fugiam para o estrangeiro para não irem para a tropa, para não terem depois que ser mobilizados para irem combater na guerra colonial, portanto, de uma maneira geral, as pessoas eram contra a guerra colonial. Aliás, tinha-se a noção de que internacionalmente, Portugal estava isolado, portanto, no geral, era toda a gente contra Portugal, estávamos a fazer uma guerra perfeitamente injusta e a oprimir povos que eram os povos nativos.

Tinha a noção de que a oposição regime, ao fascismo, aumentava?

Ela foi aumentando.

Eu conhecia pessoas que eram ligadas ao Partido Comunista, portanto eu sabia que ela existia e que existia cada vez mais. Ia-se sentindo essa oposição a vários níveis, na rua, por exemplo, havia sempre, no 1º de Maio, manifestações e aparecia a PIDE e a polícia na rua, no dia 31 de janeiro, uma data célebre também no Porto, em que aparecia a PIDE e havia pessoas que se manifestavam. Falava-se muito contra o regime e cada vez mais e havia iniciativas públicas que eram aproveitadas para se manifestarem contra o regime. Uma delas era a Queima das Fitas, curiosamente. Na Queima das Fitas era muito comum haver manifestações contra o regime. E aparecia a Pide e prendia estudantes que se estavam a manifestar. E eu lembro-me que fui com um amigo uma vez que andava na Queima das Fitas, eu andava no liceu e ele foi preso. A Pide prendeu-o. Na verdade, sentia-se constantemente essa oposição, sentia-se popularmente, no meio do povo, mas ela provavelmente era reflexo da atividade política, particularmente do Partido Comunista porque era a mais importante e que era a temida pelo regime porque se havia mais alguma, fazia-lhes cócegas, não os incomodava, quem os incomodava e lhes fazia medo era o Partido Comunista. Sabia-se que ele existia e que conseguia através dos seus militantes que ninguém sabia quem eram porque eles eram clandestinos, ou andavam muito escondidos, mas conseguiam-se organizar e organizar as pessoas. Isto particularmente aqui no norte, porque houve mais para Sul, hoje sabe-se que houve greves, houve na Marinha Grande, havia no Alentejo manifestações em que houve mortos inclusivamente, Catarina Eufémia, etc, a gente sabe isso hoje, na altura não se sabia, não era possível saber, só alguns saberiam, a maioria não sabia. Mas sentia-se, sentia-se que havia oposição e que as pessoas sabiam que mais tarde ou mais cedo isto havia de cair, e caiu mesmo no dia 25 de Abril de 74.

Tinha alguma ideia do que se passava fora do país? Tinha ideia de como era diferente a vida em países da Europa como a França ou a Alemanha?

Sim, sabia-se, através dos emigrantes, aqueles que fugiam, ia-se sabendo, tinha-se notícias, as pessoas sabiam que a vida lá era completamente diferente, porque os próprios turistas que apareciam aqui, eu conheci alguns, até em Viana conheci uns franceses, contavam que havia partidos, as pessoas podiam falar, nós tínhamos a noção de que vivíamos numa ditadura, aqui sabíamos aonde, aqui e em Espanha também, com o Franco, mas que havia países, e tinha-se a noção, sobretudo no norte da Europa, que eram países livres, havia muita gente que fugia para lá, particularmente quem queria fugir do serviço militar, era muito comum fugirem para os países nórdicos, onde eram melhor recebidos. Aqueles que fugiam para ir trabalhar, fugiam para França, duma maneira geral. E havia informações a partir dessas pessoas que essas vidas eram completamente diferentes, eram sociedades completamente diferentes, as pessoas podiam falar, podiam-se manifestar, havia eleições, havia partidos, isso sabia-se claro.

E acha que se não fosse por essas pessoas conseguia saber alguma coisa?

Era muito mais difícil, de uma maneira ou de outra essas coisas iam-se sabendo, havia quem soubesse melhor, outros não sabiam, ou sabiam muito pouco. Também é preciso perceber que nas grandes cidades havia um relacionamento com um maior número de pessoas, particularmente com o estrangeiro, com turistas e conheciam pessoas que tinham estado lá fora, estavam muito mais bem informadas, é evidente que se tu começavas a ir para o interior, para aqueles cidades e para aquelas regiões agrícolas, as pessoas tinham muito pouca informação, sabiam muito pouco, onde havia os chamados caciques, aqueles que dominavam o comportamento e o pensamento das pessoas. Onde a Igreja também teve aí um papel importante, em apoio ao regime, porque lhes interessava isso.

Comparando o antes e o depois da revolução de Abril, quais foram as principais mudanças que observou?

As mudanças foram enormes. Para começar a sensação, a sensação de quem viveu o antes, o durante e o depois, foi uma sensação fantástica, uma sensação de liberdade, parecia que estávamos a viver num sítio completamente diferente, o ar era diferente, o ar que se respirava. As pessoas andavam à vontade, não precisavam de olhar para trás, nem para o lado a ver quem é que as estava a ouvir, as pessoas tinham mesmo a necessidade de se manifestar e dar a sua opinião sobre as coisas. Completamente diferente. A forma como se vivia ou se passou a viver. Passou-se a viver muito mais rápido, os acontecimentos eram muitos e até de uma forma descontrolada, às vezes. Vivia-se muito rapidamente, parecia que o tempo tinha acelerado. Foi um período extremamente interessante e continua a ser hoje em dia, apesar de tudo. Não tem comparação nenhuma o tempo que nós vivemos hoje com o tempo que se vivia antes, é impensável. Hoje, apesar de tudo, porque já existem hoje em dia alguns resquícios de censuras e coisas assim do género, em que já há quem queira que só sejam ouvidos aqueles que lhes convém e os outros são pouco ouvidos ou, pelo menos, não permitem que eles sejam tão ouvidos. Mas apesar de tudo há liberdade, há partidos, há eleições, as pessoas podem manifestar-se, dizer o que pensam. Mas é muito diferente, vive-se de uma forma completamente diferente, não tem comparação. Além do mais as injustiças sociais, que ainda hoje existem, mas incomparavelmente muito menos do que existiam antigamente. Antigamente havia um grupo de pessoas a quem tudo era permitido, e tudo tinham, e tudo podiam fazer e havia os outros que só faziam aquilo que eles queriam e viviam muito mal. E de facto a qualidade de vida melhorou imenso, apesar de não ser ainda grande coisa, se compararmos com os restantes países da Europa, mas comparando com aquilo que foi a forma como se vivia antes do 25 de Abril é incomparavelmente melhor, há muito menos pobreza, apesar de ainda existir e muito, era muitíssimo maior.

Foi destacado para a guerra?

Eu não fui porque houve o 25 de Abril se não teria sido, provavelmente. Aquilo era muito difícil não ser, quase toda a gente ia lá parar. Eu lembro-me que dizia na altura que, evacuados da guerra colonial eram cerca de 60 por semana, evacuados eram mortos ou feridos, o que era muita gente. Aquilo era uma desgraça completa. A juventude, os homens, sobretudo, porque eram eles que iam à guerra, tinham essa parte da vida completamente amputada, e alguns ficaram mesmo, definitivamente, ou porque morriam lá ou porque ficaram feridos, outros vieram com sequelas psicológicas horríveis, os traumas de guerra eram coisas horríveis. Eu conheci alguns, que se atiravam para o chão na rua, às vezes, ao mínimo ruído atiravam-se para o chão, era comum isso acontecer, houve uma altura em que se via muito isso. Foi terrível…

*Sophia de Mello Breyner Andresen, poema "Hoje é a madrugada que eu esperava"

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